“Burnout”: a ameaça à formação no futebol português

Dezembro 2020 | Por: Tiago F. Silva

Como lutar por um futuro, quando se está ante um presente tão incerto?

Este é muito provavelmente o pensamento que tem vindo a assolar a cabeça de cada jovem atleta português. Pode ser grande o esforço para o esquecer, mas ele está lá, a cada acordar, a cada deitar, a cada aula, a cada treino, a cada momento.

E tem sido assim, há já praticamente 9 meses. Em março, os campeonatos jovens foram suspensos. Desde então, o quotidiano de muitos jovens atletas tem sido pautado pela incerteza.

A incerteza do apito final, no meio de um jogo ante um adversário poderoso.

Em Portugal, estima-se que mais de 150 mil jovens atletas estejam a ser diretamente afetados pela paragem competitiva. Contudo, não significa que estejam necessariamente parados.

Muito pelo contrário.

Apesar de não competirem, muitos dos jovens mantêm a rotina de treinos, ainda que condicionada, mas sempre em busca de manter a condição física e mental necessária ao desenvolvimento sustentado, tal como o era antes da pandemia.

Falta-lhes a vertente competitiva, nalguns casos até a lúdica, mas assim se mantêm, pelo menos até ordens em contrário.

O que poucos parecem entender são as consequências destas vidas em suspenso.

E sim, não são diferentes das restantes, é um facto, mas imagine o seguinte cenário: liga-se remotamente ao local de trabalho, retoma aquele contacto habitual e impessoal com os colegas, mas o chefe diz não haver qualquer objetivo a cumprir, até porque nem consegue garantir o regresso à atividade ou a subsistência da empresa.

Portanto, trabalhar sem objetivos, sem qualquer garantia de retoma ou de futuro.

Uma vida em suspenso. Chega até a ser algo surreal perceber o quão ténue se tornou a linha que diferencia a vida de cada um de nós.


O “burnout” juvenil e os efeitos que se sentem

Isto leva-nos ao ponto central deste artigo.

Esta ausência de competição e, por consequência, a incerteza acerca do futuro, está a despoletar um sintoma potencialmente perigoso na cabeça dos jovens atletas.

Os especialistas chamam de “burnout”, mas pode também classificar-se como um stress crónico ou um distúrbio psíquico de caráter depressivo.

Aliado aos fatores da vida pessoal e íntima, sejam eles a escola, a relação com os amigos ou família, agora também a atividade desportiva se tornou foco de preocupação negativa.

Muitos atletas denotam já sintomas depressivos, resultantes de todo o contexto que os envolve. Afinal, como é possível concretizar o sonho de ser futebolista a curto-médio prazo, se falta o como, o quando e até o onde.

E há outro pormenor absolutamente fulcral.

Lembra-se da empresa? Desta vez, imagine que é um mero estagiário na mesma, cuja formação apontava precisamente para um dia vir a ser absorvido nos mais altos quadros. De repente, essa formação é interrompida, o que o deixa claramente em posição de desvantagem e até algo relutante em relação às possibilidades de isso vir a acontecer.

Incerteza, de novo.

Não podemos esquecer que, muitos destes jovens, estavam às portas dos escalões profissionais e da alta competição. Se esta última foi apenas interrompida e, entretanto, retomada há já largos meses, como poderão estes jovens ser absorvidos a curto prazo, sem margem para adaptação e falta de ritmo competitivo?

Nesse sentido, recordamos uma opinião dada à STAR por parte de uma psicóloga no desporto.

[Os principais desabafos] ao nível da formação, talvez a preocupação com a vida desportiva porque não competem, só treinam e nem sempre é fácil trabalhar sem o fator da competição. Toda esta situação pode afetar o trabalho deles e a própria motivação. Por exemplo, vão para o treino já equipados, sendo privados do tempo de balneário, local onde há interação social e partilha de experiências, e logo aí já estão a ser implicados no que seria normal na vida desportiva deles. Sem esquecer a vida escolar, porque alguns dizem ser insuportável ter máscara durante várias horas e não poderem estar com os amigos descontraidamente. Há também atletas deslocados, que partilham casa com outros colegas, o que pode causar alguma impotência perante a situação.

Catarina Bertocchini, psicóloga no Leixões S.C, retratava assim as preocupações das gerações mais novas. E assim permanece o cenário, inalterado e sem perspetivas.

No entanto, convém sublinhar que algumas competições jovens foram concluídas posteriormente, caso da UEFA Youth League. Outras foram retomadas, como a Liga Revelação, ainda que nela só compitam equipas sub-23 de alguns clubes.

Quanto ao regresso dos escalões mais jovens, tal como em tantas outras temáticas a debate, impera para já uma certa divergência, embora todos apelem a um consenso.

A verdade é que, não sendo fácil de explicar esta suspensão, também é difícil encontrar uma solução pacífica e que vá ao encontro das pretensões de todos.

Concluímos, portanto, com algumas perguntas, em jeito de reflexão.

Sendo a formação um dos ex-líbris e um dos grandes motivos de reconhecimento do futebol português dentro e fora de portas, será sustentável mantê-la em suspenso, sobretudo a nível competitivo?

Até quando se pode condicionar a vida destes jovens também no desporto, sem que isso venha a ter repercussões nos homens e mulheres que serão amanhã?

Estará a formação em Portugal sob ameaça de um retrocesso?

As respostas podem até ser mais do que óbvias, mas só o tempo as trará.