Fevereiro 2021 | Por: Tiago F. Silva
GOLO!! (grita uma criança)
Lembra-se do pontapé na bola que ecoava até na divisão mais recôndita da casa?
Ah, aquele som mágico e tão cativante que vinha do outro lado da janela.
Aos ouvidos do comum dos mortais nem sempre era percetível, é certo, porém, para aqueles que ousavam desafiar o tempo, aquele era o som do final da espera incessante.
Seguia-se um ritual atabalhoado, mas disfarçado por uns tiques de vedeta, como se do outro lado do túnel estivesse um Camp Nou em apoteose para nos receber.
Até as escadas pareciam feitas de uma fina areia, que se desfazia debaixo dos nossos pés, ao ponto de nem repararmos que eram um obstáculo diário, como que um treino de aquecimento para o grande espetáculo.
Saíamos de casa rumo à glória e, à chegada, esperávamos trazer umas quantas marcas, manchas, suores, cheiros. E aquele sorriso, de quem sabia que lá na praceta não havia melhor do que nós, ou que nenhuma equipa era capaz de derrotar a nossa, solidificada não por uma tática, mas por uma intuição natural que advinha de tantos anos de jogatanas e de amizade.
Aquele “GOLO!!” tão libertador, que nos livrava de qualquer problema na vida e nos elevava ao patamar dos imortais, capazes de parar até o tempo naquele momento.
Lembra-se disso e do futebol que nos fez apaixonar?
Bom, digamos que está em processo de transferência para um novo mundo.
O mundo virtual.
“Sabe onde isso acontece? Na PlayStation”
Pegamos nesta conhecida citação de Jorge Jesus, para mostrar que o fenómeno do eSports já não é de hoje.
No entanto, só de há uns anos a esta parte é que começou a ser tratado como uma vertente do desporto, tendo toda uma indústria assente no mesmo.
A evolução tecnológica permitiu ao futebol migrar paulatinamente das ruas para as consolas e computadores, um pouco por todo o mundo, sobretudo nos países mais desenvolvidos.
A preponderância que assumia novas gerações era tal que, a determinada altura, os “players” envolvidos perceberam que haveria um enorme potencial económico no eSports.
O fluxo ascendente teve início no simples utilizador, passou pelos criadores de videojogos, clubes e até Federações e Associações de futebol de vários países.
Mais do que meros espectadores, também os jogadores profissionais decidiram juntar-se ao eSports, criando até equipas para o efeito. Mas já lá vamos.
Por fim, como expectável, surgiu o investimento das marcas, permitindo criar uma espécie de ecossistema profícuo para todos.
Uma indústria cada vez mais sedutora
Hoje, mais do que nunca, a indústria do eSports parece não conhecer limites e revela-se um ecossistema pleno, capaz de acompanhar o utilizador desde a iniciação ao futebol, até à sua profissionalização, quase sem sair do sofá.
De acordo com dados da consultora Newzoo, em 2020, perto de 500 milhões de pessoas em todo o Mundo já assistiam a conteúdos de eSports, num mercado que movimentava mais de mil milhões de dólares. Os números superavam os do Futebol Americano e do Rugby, em conjunto.
Em Portugal, estima-se que existam já dezenas de milhares de praticantes frequentes e inscritos em torneios de futebol virtual.
Para os “players” no mercado, a forma como o eSports envolve o seu consumidor permite, em teoria, capitalizar o investimento sem grande risco, o que o torna extremamente aliciante.
Já no que toca ao utilizador, representa uma oportunidade de poder encontrar até um rumo profissional para a sua vida, numa indústria que garante condições de excelência para os melhores.
Este potencial sedutor representa também uma dor de cabeça para a indústria convencional, que se multiplica em esforços para conseguir ganhar nas duas frentes.
Isto porque, se assistimos ao emergir de um “novo futebol”, tornou-se imperativo pensar em medidas para proteger o futebol de sempre e a sua indústria, sob o risco de o virtual arrastar consigo uma grande fatia dos consumidores no futuro.
Nesse sentido, e cingindo-nos à realidade mais próxima, tem sido notável o esforço que tanto a Liga Portugal como a Federação Portuguesa de Futebol têm feito no incremento sustentado do eSports.
As entidades sentiram-se obrigadas a ir ao encontro das necessidades de alguns clubes nacionais, que vinham já apostando e muito nesse setor, mas sempre com a preocupação de manter um equilíbrio entre futebol real e virtual.
Como tal, neste momento já é possível participar em competições como a eLiga ou a FPF Masters eFootball, inserida no calendário da FIFA, ambas com um espaço mediático cada vez maior e mais dedicado.
No caso desta última, está já garantida a participação de 33 equipas, incluindo duas que pertencem a atuais jogadores profissionais, como “Toto” Salvio (TS Warrior Player) e Diogo Jota (Diogo Jota Esports).
Player 1 vs Player real
O fenómeno do eSports conquistou os corações dos amantes de futebol e, como tal, não foi de estranhar o alcance que teve também nos futebolistas profissionais.
Conhecidos pelos dotes dentro de campo, muitos deles começaram a ganhar relevância também pelo que faziam nos tempos livres, de comando na mão, fosse em jogos de futebol ou de outro tipo.
Diogo Jota, como já mencionámos, é um conhecido “gamer” e tem uma reputação bastante consolidada na indústria, reforçada pelo título conquistado num torneio virtual da Premier League, aquando da forçada paragem competitiva.
O internacional português, atualmente no Liverpool, será mesmo o primeiro de sempre a participar enquanto jogador num torneio da FIFA (no torneio da FPF acima referido).
Kun Aguero e Daniel Alves são outros exemplos de jogadores que criaram as próprias equipas profissionais. No caso do brasileiro, a sua “Good Crazy” tem até um cariz social, visto que aposta na contratação de jovens que moram em favelas.
Aqui está a prova de que, o que antes era visto como apenas diversão, hoje tornou-se uma profissão e uma fonte de investimento, mudando de vez a visão sobre o futebol, tal como o conhecíamos antes.
Se ele deixou de existir? Claro que não, apenas ganhou roupagens diferentes, tal como tantas coisas na nossa vida. Nada se perde, tudo se transforma, porventura.
Poderão ambos os tipos de futebol coexistir de forma equilibrada e profícua num futuro não muito longínquo? Bom, talvez seja essa a grande dúvida para já.
A única certeza é esta, o e-Sports veio para ficar e tem tudo para se cimentar ainda mais, sobretudo numa altura em que a própria Humanidade tende a “virtualizar-se” cada vez mais.
Da chuteira para o comando, do pé para a mão, da rua para o sofá. O futebol como o conhecíamos mudou, mas mantém-se a fantasia de sempre. E, felizmente, ainda há tanto por jogar.