Catarina Bertocchini:

“As novas gerações olham para o treino mental de forma mais natural”

Novembro 2020 | Por: Nuno Aguiar-Branco & Tiago F. Silva

Por detrás de um atleta está uma pessoa e no futebol essa evidência assume cada vez mais relevo. É aí que o psicólogo entra em campo, procurando extrair o melhor de uma pessoa, em prol de um melhor rendimento como atleta. Foi esse o intuito da conversa da STAR com Catarina Bertocchini. A psicóloga do Leixões S.C abordou conceitos que auxiliam na compreensão do papel que a psicologia desempenha no futebol moderno, as técnicas utilizadas e de que forma podem complementar o trabalho de campo.

 

STAR – A psicologia no desporto e sobretudo em alta competição tem sido uma área cada vez mais aprofundada. A seu ver, por que razão aconteceu isso?

Catarina Bertocchini – Acredito que, cada vez mais, a psicologia começa a conquistar o seu espaço no desporto, apesar de ainda não estar totalmente inserida neste contexto. Há cada vez mais consciência do que a parte mental representa no desporto de alta competição, não esquecendo os escalões de formação. Aliás, a FPF já considera que esta componente deve fazer parte dos escalões de formação, pela importância que tem. Acredito também que tenhamos oportunidade de convencer as pessoas por via do alcance dos resultados, porque têm de ver para crer e passa muito por aí. À medida que os resultados vão aparecendo, as pessoas estarão mais dispostas para investir nesta componente e é possível validar o trabalho que realizamos. Tal como no treino físico, o treino mental não apresenta resultados do dia para a noite: requer disciplina, método e empenho. A pessoa que se envolve no treino mental recebe dele aquilo que investe. No entanto, as gerações mais novas já começam a olhar para o treino mental de forma mais natural. O grande objetivo da psicologia do desporto passa por promover o bem-estar e o rendimento dos atletas e penso que muitos já começam a perceber isso.

STAR – Aos que não têm bem a noção do trabalho de um psicólogo no seio de uma equipa, quais as principais funções ao encargo deste profissional?

CB – Bom, pode ter intervenção direta ou indireta. Na primeira, há um triângulo entre psicólogo, treinador e atleta. Ou seja, atuamos diretamente com o atleta e com o treinador e a nível individual e grupal. Quando a intervenção é indireta, o psicólogo atua apenas junto do treinador, não há contacto direto com os atletas. Nesse triângulo existe apenas ligação entre psicólogo e treinador e depois entre treinador e atleta. Nesse processo, o psicólogo “empodera” o treinador e é ele que aplica esse trabalho de “background” nos atletas. Muitas das vezes, os atletas podem nem sequer saber da existência do psicólogo quando a intervenção é indireta.

 

STAR – Com que tipo de desafios mais tem de lidar atualmente?

CB – Primeiro, o quebrar o estigma e preconceito associado à psicologia. Quando se fala disso, tende-se a associar à prática clínica, da psicoterapia e ainda há aquela ideia de que o psicólogo é para os malucos, o que não é verdade. Um psicólogo que trabalha no desporto, na vertente de melhoria de rendimento, tem precisamente o objetivo de melhorar a performance e o bem-estar de um jogador, portanto trabalha mais ao nível de desenvolvimento de competências psicológicas, que possam ajudar neste processo de melhoria contínua. Acho que é muito difícil naturalizar isso e, infelizmente, por causa disso, é preciso alguma maturidade para aceitar trabalhar a componente mental. Costumo dizer que, da mesma forma que os jogadores vão para os treinos para treinar a componente física, técnica e tática, e têm um treinador para isso, por que não vir ao psicólogo treinar a componente mental? Quando me apresento aos atletas, explico-lhes que o meu papel como psicóloga é ser a “treinadora da cabeça”, porque muda um pouco a perspetiva. Muitas vezes ir ao psicólogo, mesmo no desporto, é um pouco visto como dar parte fraca, por não ser, ainda, muito natural. Daí ser necessária a maturidade que apontei. Para além disso, o desafio mais recente tem a ver com o contexto pandémico. Por exemplo, no futebol de formação, relaciona-se com o facto de a competição ainda não estar a decorrer, o que afeta alguns atletas.

STAR – O contexto pandémico tem vindo a influenciar bastante o quotidiano de um atleta. Tem reparado nalguns sinais decorrentes disso?

CB – Sim. Acho que é normal que isto influencie o quotidiano do atleta, os de alta competição e os da formação também. No contexto pessoal e social, há a privação de estar com pessoas e são necessários cuidados constantes, o que pode gerar ansiedade. No contexto mais específico, há os casos de atletas que trabalham em clubes com testagens à covid-19 frequentes, ou seja, submetidos a zaragatoas constantes, a ausência do público na competição, noutros casos, a ausência da competição em si. Na prática do futebol não impera a distância física de segurança e um caso de covid-19 no plantel, se não for detetado precocemente, pode facilmente gerar um surto. Eles têm família, podem ter elementos em casa que poderão ser de risco, portanto, tudo isto tem uma influência muito direta. No futebol de formação, evita-se o tempo de balneário, o que também trava as interações e influencia diretamente as relações interpessoais e a coesão do grupo. Isto está tudo interligado, não se dissocia o atleta da pessoa, nem vice-versa. Tudo isto pode gerar muita ansiedade e o que os psicólogos fazem é ajudar a criar estratégias para saber lidar com ela. Seja para a questão do teste à covid-19 ou para um jogador ansioso ao entrar em campo, o mecanismo será ajudar na gestão da ansiedade, portanto os psicólogos atuam nesse sentido, naturalizando esses sentimentos e promovendo a resiliência.

 

STAR – Qual o desabafo que mais têm?

CB – Ao nível da formação, talvez a preocupação com a vida desportiva porque não competem, só treinam e nem sempre é fácil trabalhar sem o fator da competição. Toda esta situação pode afetar o trabalho deles e a própria motivação. Por exemplo, vão para o treino já equipados, sendo privados do tempo de balneário, local onde há interação social e partilha de experiências, e logo aí já estão a ser implicados no que seria normal na vida desportiva deles. Sem esquecer a vida escolar, porque alguns dizem ser insuportável ter máscara durante várias horas e não poderem estar com os amigos descontraidamente. Há também atletas deslocados, que partilham casa com outros colegas, o que pode causar alguma impotência perante a situação. Os desabafos deles são mais neste sentido.

STAR – No futebol valoriza-se muito o talento e a capacidade de trabalho de um jogador. Não acha que se deveria atribuir maior relevância à parte psicológica?

CB – Sem dúvida que sim. Se a parte mental não tivesse essa importância, então por que razão vemos oscilações de performances individuais de um jogo para o outro? O talento não sofre oscilações, a capacidade física e a questão técnica também não podem diferir muito, devido ao curto espaço de tempo entre jogos. O fator que pode fazer oscilar a performance de um jogador é, precisamente, a componente mental, fatores como a concentração, a ansiedade, a motivação… Mesmo as questões pessoais podem afetar o desempenho como, por exemplo, problemas com as companheiras. A capacidade de trabalho é de extrema importância, mas parece-me que ainda se negligencia muito a potencialidade do treino mental. Este pode ajudar, por exemplo, na tomada de decisão ou na concentração e sabemos que uma jogada, às vezes, se decide numa fração de segundo. Se um jogador não tem um “background” mental sólido, não lhe adianta ter talento e estar em forma física ou ter capacidade técnica. Penso que a diferença reside aí.

 

STAR – Há algum trabalho de acompanhamento também ao nível da vida íntima do jogador?

CB – Sim, claro. Esses fatores são muito importantes. O pai que se chateou com o filho, a mãe que criou pressão ou o teste que correu mal… Se o jogador não tiver capacidade de separar as coisas, o que é complicado, leva isso para dentro do campo. Há que saber ajudar neste processo, para que não haja interferência na competição ou até mesmo nos treinos. Aí podemos, por exemplo, trabalhar a concentração, para que os fatores externos não estejam presentes no momento de treino ou competição. Mas as reações de cada um variam muito, há uns que recorrem ao treino para ultrapassar e esquecer problemas, há outros para os quais o melhor treino é não treinar em determinadas situações. Há que respeitar as individualidades de cada um, as suas reações e é muito importante estar atento à componente social e familiar. É impossível pensar só nas competências para a melhoria do rendimento e ignorar as restantes componentes.

 

STAR – Mas há algum processo de acompanhamento mais metódico, ou é feito no momento, quando há sinais da parte do jogador?

CB – Não obrigamos ninguém a ir ao psicólogo, naturalmente. Agora estou a fazer mais trabalho a nível da consulta individual mas quando trabalhei na equipa técnica nos sub-19, todos vieram a uma primeira consulta, para quebrar o gelo, porque eu iria ser uma cara frequente no quotidiano deles. Teve de haver esse primeiro impacto e, a partir daí, vinha quem queria. O que posso fazer é dar o primeiro passo quando vejo que alguém precisa ou quer, mas ainda não teve iniciativa. Esse primeiro contacto permite conhecer o jogador a nível familiar, social, escolar e desportivo e serve também para me apresentar e explicar a aplicabilidade da psicologia no contexto desportivo. E depois, quando há um acompanhamento prolongado no tempo, desenvolve-se uma relação de confiança, o que é essencial neste processo. E parto do princípio de que trabalhamos o que a pessoa quer trabalhar, ninguém obriga ninguém, nem sequer a falar de assuntos que não quer. É um espaço seguro e confortável.

STAR – Muitas vezes, os pais colocam uma pressão adicional nos próprios filhos. É comum lidarem com essas questões?

CB – É uma questão muito presente e tenho vindo a ter um papel muito ativo no clube, inclusive com formações para os pais, porque são de extrema importância. Nem é só a pressão em si, mas também a questão do comportamento na bancada, por exemplo. Alguns pais precisam de uma reeducação nesse sentido e eles, por serem tão importantes na vida de um jovem atleta, não podem ser postos de parte, têm de fazer parte deste processo. Um atleta mais novo, sem os pais, não anda no futebol, porque são eles quem o leva aos treinos, quem paga as cotas, quem compra os equipamentos, quem o leva aos jogos. Os pais fazem, efetivamente, parte e, nesse sentido, devem envolver-se. Existem três níveis de envolvimento: o sub-envolvimento, onde estão os pais que pouco ou nada se envolvem, que não ficam para ver jogos ou treinos, que nem questionam os filhos sobre o futebol; o envolvimento moderado, onde estão os pais que respeitam as decisões dos treinadores, que apoiam os filhos de forma instrumental e financeira e providenciam suporte emocional, companheirismo, preocupação e validação; e o sobre-envolvimento, onde se encontram os pais que se envolvem excessivamente, são exageradamente críticos e estabelecem objetivos irreais para o rendimento dos filhos.

 

STAR – De que forma pode ser trabalhada essa “reeducação”?

CB – É muito complicado fazer essa reeducação dos pais e nós investimos muito nisso, estando sempre disponíveis para os receber e ajudar. Muitas vezes, na ótica de um pai, o filho é o melhor e tem o direito de jogar, mas todos sabemos que só entram onze, não é possível serem todos titulares. E há escalões (os dos mais novos) em que a igualdade de oportunidades é privilegiada. Quando o comportamento do pai ou da mãe é desadequado, é natural que os miúdos sintam isso. Pode acontecer que alguns prefiram que os pais nem estejam na bancada porque os envergonham, pressionam, insultam o adversário ou porque reclamam com o treinador. Isto não deixa o atleta confortável e, por vezes, até pode preferir que os pais estejam fisicamente ausentes. E o oposto também acontece, com muitos miúdos a não terem quem veja os jogos ou treinos deles, com os pais apenas a ir levar e buscar. Tudo o que os pais fazem é absorvido por eles. Isto é um ciclo e os atletas de hoje serão os pais de amanhã. É preciso haver um equilíbrio no envolvimento parental, porque a maioria dos jovens, a determinada altura, não sobrevive no futebol sem o suporte dos pais. O que também pode acontecer é os pais terem todo o interesse em envolver-se, mas nem sempre saberem como fazê-lo adequadamente. Por exemplo, abordar o filho no final de uma competição e perguntar se ele ganhou ao invés de se ele se divertiu. Isto pode fazer a diferença. Um pai ao fazer essa pergunta está a transmitir a convicção da importância da vitória e, nalguns escalões de formação, a competição ainda não é o mais importante, mas sim a aprendizagem do desporto em si, a diversão. É importante dar-lhes este suporte e somos todos ativos neste processo de reeducação.

STAR – Qual considera ser o jogador com o perfil psicológico mais adequado para o futebol moderno?

CB – Não há um perfil específico, mas sabe-se que há traços que um atleta pode ter e que o aproximam mais do sucesso. Por exemplo, fazer atribuições causais internas, isto é, quando perde um jogo, atribui isso a uma má performance sua nesse dia, em vez de atribuir a culpa à arbitragem ou à meteorologia. Quando há atribuição causal interna, ele responsabiliza-se individualmente e, ao fazê-lo, passa a tomar conta das suas ações. A motivação intrínseca também, ou seja, ser movido por fatores internos como a paixão, o prazer, o alcance de objetivos pessoais. Também ser orientado para a tarefa e não para o resultado porque isso favorece a adaptação psicológica, visto que, mesmo perante uma derrota na competição, o atleta pode alcançar uma vitória individual. Mais ainda, ter um bom autoconhecimento, perceção da sua competência e autoconfiança. Para além disso, inteligência prática como a capacidade de resolução de problemas e a tomada de decisão e inteligência emocional. Não é possível fornecer uma “receita” de perfil específica, mas estas características podem aproximar o atleta do sucesso.

STAR – Quais as valências que um psicólogo poderá aportar ao trabalho do treinador?

CB – Bom, o treinador está capacitado para diagnosticar, mas não passa desta fase de diagnóstico. Ele identifica, por exemplo, que não há concentração ou confiança, mas sabe resolver isso? Não. Poderá saber algumas coisas, mas não está habilitado. É aí que entra o psicólogo, para complementar com a componente mental. Pode ajudar a traçar o perfil do atleta e fornecer esse conhecimento ao treinador. Para além disso, ajudar a interagir de forma mais adequada ao nível do feedback e instrução. Pode também trabalhar-se diretamente com o treinador coisas relacionadas com estilo de liderança do próprio, estilos de comunicação, verbal ou não verbal, em momento de treino ou de jogo. Ajudar ainda na gestão de expectativas e na gestão emocional… passa por “empoderar” o treinador (chamado “empowerment”). E mesmo a nível mais pessoal, ajudando-o na autorregulação, a ter tempo para si, porque, muitas vezes, envolvem-se no papel de treinador 24 horas por dia. Até porque, nalguns clubes, eles são mais do que treinadores. Contudo, ainda há treinadores que não gostam de trabalhar com o psicólogo, portanto é preciso mudar mentalidades

Por detrás de um atleta está uma pessoa e no futebol essa evidência assume cada vez mais relevo. É aí que o psicólogo entra em campo, procurando extrair o melhor de uma pessoa, em prol de um melhor rendimento como atleta. Foi esse o intuito da conversa da STAR com Catarina Bertocchini. A psicóloga do Leixões S.C abordou conceitos que auxiliam na compreensão do papel que a psicologia desempenha no futebol moderno, as técnicas utilizadas e de que forma podem complementar o trabalho de campo.

 

STAR – A psicologia no desporto e sobretudo em alta competição tem sido uma área cada vez mais aprofundada. A seu ver, por que razão aconteceu isso?

Catarina Bertocchini – Acredito que, cada vez mais, a psicologia começa a conquistar o seu espaço no desporto, apesar de ainda não estar totalmente inserida neste contexto. Há cada vez mais consciência do que a parte mental representa no desporto de alta competição, não esquecendo os escalões de formação. Aliás, a FPF já considera que esta componente deve fazer parte dos escalões de formação, pela importância que tem. Acredito também que tenhamos oportunidade de convencer as pessoas por via do alcance dos resultados, porque têm de ver para crer e passa muito por aí. À medida que os resultados vão aparecendo, as pessoas estarão mais dispostas para investir nesta componente e é possível validar o trabalho que realizamos. Tal como no treino físico, o treino mental não apresenta resultados do dia para a noite: requer disciplina, método e empenho. A pessoa que se envolve no treino mental recebe dele aquilo que investe. No entanto, as gerações mais novas já começam a olhar para o treino mental de forma mais natural. O grande objetivo da psicologia do desporto passa por promover o bem-estar e o rendimento dos atletas e penso que muitos já começam a perceber isso.

STAR – Aos que não têm bem a noção do trabalho de um psicólogo no seio de uma equipa, quais as principais funções ao encargo deste profissional?

CB – Bom, pode ter intervenção direta ou indireta. Na primeira, há um triângulo entre psicólogo, treinador e atleta. Ou seja, atuamos diretamente com o atleta e com o treinador e a nível individual e grupal. Quando a intervenção é indireta, o psicólogo atua apenas junto do treinador, não há contacto direto com os atletas. Nesse triângulo existe apenas ligação entre psicólogo e treinador e depois entre treinador e atleta. Nesse processo, o psicólogo “empodera” o treinador e é ele que aplica esse trabalho de “background” nos atletas. Muitas das vezes, os atletas podem nem sequer saber da existência do psicólogo quando a intervenção é indireta.

 

STAR – Com que tipo de desafios mais tem de lidar atualmente?

CB – Primeiro, o quebrar o estigma e preconceito associado à psicologia. Quando se fala disso, tende-se a associar à prática clínica, da psicoterapia e ainda há aquela ideia de que o psicólogo é para os malucos, o que não é verdade. Um psicólogo que trabalha no desporto, na vertente de melhoria de rendimento, tem precisamente o objetivo de melhorar a performance e o bem-estar de um jogador, portanto trabalha mais ao nível de desenvolvimento de competências psicológicas, que possam ajudar neste processo de melhoria contínua. Acho que é muito difícil naturalizar isso e, infelizmente, por causa disso, é preciso alguma maturidade para aceitar trabalhar a componente mental. Costumo dizer que, da mesma forma que os jogadores vão para os treinos para treinar a componente física, técnica e tática, e têm um treinador para isso, por que não vir ao psicólogo treinar a componente mental? Quando me apresento aos atletas, explico-lhes que o meu papel como psicóloga é ser a “treinadora da cabeça”, porque muda um pouco a perspetiva. Muitas vezes ir ao psicólogo, mesmo no desporto, é um pouco visto como dar parte fraca, por não ser, ainda, muito natural. Daí ser necessária a maturidade que apontei. Para além disso, o desafio mais recente tem a ver com o contexto pandémico. Por exemplo, no futebol de formação, relaciona-se com o facto de a competição ainda não estar a decorrer, o que afeta alguns atletas.

STAR – O contexto pandémico tem vindo a influenciar bastante o quotidiano de um atleta. Tem reparado nalguns sinais decorrentes disso?

CB – Sim. Acho que é normal que isto influencie o quotidiano do atleta, os de alta competição e os da formação também. No contexto pessoal e social, há a privação de estar com pessoas e são necessários cuidados constantes, o que pode gerar ansiedade. No contexto mais específico, há os casos de atletas que trabalham em clubes com testagens à covid-19 frequentes, ou seja, submetidos a zaragatoas constantes, a ausência do público na competição, noutros casos, a ausência da competição em si. Na prática do futebol não impera a distância física de segurança e um caso de covid-19 no plantel, se não for detetado precocemente, pode facilmente gerar um surto. Eles têm família, podem ter elementos em casa que poderão ser de risco, portanto, tudo isto tem uma influência muito direta. No futebol de formação, evita-se o tempo de balneário, o que também trava as interações e influencia diretamente as relações interpessoais e a coesão do grupo. Isto está tudo interligado, não se dissocia o atleta da pessoa, nem vice-versa. Tudo isto pode gerar muita ansiedade e o que os psicólogos fazem é ajudar a criar estratégias para saber lidar com ela. Seja para a questão do teste à covid-19 ou para um jogador ansioso ao entrar em campo, o mecanismo será ajudar na gestão da ansiedade, portanto os psicólogos atuam nesse sentido, naturalizando esses sentimentos e promovendo a resiliência.

 

STAR – Qual o desabafo que mais têm?

CB – Ao nível da formação, talvez a preocupação com a vida desportiva porque não competem, só treinam e nem sempre é fácil trabalhar sem o fator da competição. Toda esta situação pode afetar o trabalho deles e a própria motivação. Por exemplo, vão para o treino já equipados, sendo privados do tempo de balneário, local onde há interação social e partilha de experiências, e logo aí já estão a ser implicados no que seria normal na vida desportiva deles. Sem esquecer a vida escolar, porque alguns dizem ser insuportável ter máscara durante várias horas e não poderem estar com os amigos descontraidamente. Há também atletas deslocados, que partilham casa com outros colegas, o que pode causar alguma impotência perante a situação. Os desabafos deles são mais neste sentido.

STAR – No futebol valoriza-se muito o talento e a capacidade de trabalho de um jogador. Não acha que se deveria atribuir maior relevância à parte psicológica?

CB – Sem dúvida que sim. Se a parte mental não tivesse essa importância, então por que razão vemos oscilações de performances individuais de um jogo para o outro? O talento não sofre oscilações, a capacidade física e a questão técnica também não podem diferir muito, devido ao curto espaço de tempo entre jogos. O fator que pode fazer oscilar a performance de um jogador é, precisamente, a componente mental, fatores como a concentração, a ansiedade, a motivação… Mesmo as questões pessoais podem afetar o desempenho como, por exemplo, problemas com as companheiras. A capacidade de trabalho é de extrema importância, mas parece-me que ainda se negligencia muito a potencialidade do treino mental. Este pode ajudar, por exemplo, na tomada de decisão ou na concentração e sabemos que uma jogada, às vezes, se decide numa fração de segundo. Se um jogador não tem um “background” mental sólido, não lhe adianta ter talento e estar em forma física ou ter capacidade técnica. Penso que a diferença reside aí.

 

STAR – Há algum trabalho de acompanhamento também ao nível da vida íntima do jogador?

CB – Sim, claro. Esses fatores são muito importantes. O pai que se chateou com o filho, a mãe que criou pressão ou o teste que correu mal… Se o jogador não tiver capacidade de separar as coisas, o que é complicado, leva isso para dentro do campo. Há que saber ajudar neste processo, para que não haja interferência na competição ou até mesmo nos treinos. Aí podemos, por exemplo, trabalhar a concentração, para que os fatores externos não estejam presentes no momento de treino ou competição. Mas as reações de cada um variam muito, há uns que recorrem ao treino para ultrapassar e esquecer problemas, há outros para os quais o melhor treino é não treinar em determinadas situações. Há que respeitar as individualidades de cada um, as suas reações e é muito importante estar atento à componente social e familiar. É impossível pensar só nas competências para a melhoria do rendimento e ignorar as restantes componentes.

 

STAR – Mas há algum processo de acompanhamento mais metódico, ou é feito no momento, quando há sinais da parte do jogador?

CB – Não obrigamos ninguém a ir ao psicólogo, naturalmente. Agora estou a fazer mais trabalho a nível da consulta individual mas quando trabalhei na equipa técnica nos sub-19, todos vieram a uma primeira consulta, para quebrar o gelo, porque eu iria ser uma cara frequente no quotidiano deles. Teve de haver esse primeiro impacto e, a partir daí, vinha quem queria. O que posso fazer é dar o primeiro passo quando vejo que alguém precisa ou quer, mas ainda não teve iniciativa. Esse primeiro contacto permite conhecer o jogador a nível familiar, social, escolar e desportivo e serve também para me apresentar e explicar a aplicabilidade da psicologia no contexto desportivo. E depois, quando há um acompanhamento prolongado no tempo, desenvolve-se uma relação de confiança, o que é essencial neste processo. E parto do princípio de que trabalhamos o que a pessoa quer trabalhar, ninguém obriga ninguém, nem sequer a falar de assuntos que não quer. É um espaço seguro e confortável.

STAR – Muitas vezes, os pais colocam uma pressão adicional nos próprios filhos. É comum lidarem com essas questões?

CB – É uma questão muito presente e tenho vindo a ter um papel muito ativo no clube, inclusive com formações para os pais, porque são de extrema importância. Nem é só a pressão em si, mas também a questão do comportamento na bancada, por exemplo. Alguns pais precisam de uma reeducação nesse sentido e eles, por serem tão importantes na vida de um jovem atleta, não podem ser postos de parte, têm de fazer parte deste processo. Um atleta mais novo, sem os pais, não anda no futebol, porque são eles quem o leva aos treinos, quem paga as cotas, quem compra os equipamentos, quem o leva aos jogos. Os pais fazem, efetivamente, parte e, nesse sentido, devem envolver-se. Existem três níveis de envolvimento: o sub-envolvimento, onde estão os pais que pouco ou nada se envolvem, que não ficam para ver jogos ou treinos, que nem questionam os filhos sobre o futebol; o envolvimento moderado, onde estão os pais que respeitam as decisões dos treinadores, que apoiam os filhos de forma instrumental e financeira e providenciam suporte emocional, companheirismo, preocupação e validação; e o sobre-envolvimento, onde se encontram os pais que se envolvem excessivamente, são exageradamente críticos e estabelecem objetivos irreais para o rendimento dos filhos.

 

STAR – De que forma pode ser trabalhada essa “reeducação”?

CB – É muito complicado fazer essa reeducação dos pais e nós investimos muito nisso, estando sempre disponíveis para os receber e ajudar. Muitas vezes, na ótica de um pai, o filho é o melhor e tem o direito de jogar, mas todos sabemos que só entram onze, não é possível serem todos titulares. E há escalões (os dos mais novos) em que a igualdade de oportunidades é privilegiada. Quando o comportamento do pai ou da mãe é desadequado, é natural que os miúdos sintam isso. Pode acontecer que alguns prefiram que os pais nem estejam na bancada porque os envergonham, pressionam, insultam o adversário ou porque reclamam com o treinador. Isto não deixa o atleta confortável e, por vezes, até pode preferir que os pais estejam fisicamente ausentes. E o oposto também acontece, com muitos miúdos a não terem quem veja os jogos ou treinos deles, com os pais apenas a ir levar e buscar. Tudo o que os pais fazem é absorvido por eles. Isto é um ciclo e os atletas de hoje serão os pais de amanhã. É preciso haver um equilíbrio no envolvimento parental, porque a maioria dos jovens, a determinada altura, não sobrevive no futebol sem o suporte dos pais. O que também pode acontecer é os pais terem todo o interesse em envolver-se, mas nem sempre saberem como fazê-lo adequadamente. Por exemplo, abordar o filho no final de uma competição e perguntar se ele ganhou ao invés de se ele se divertiu. Isto pode fazer a diferença. Um pai ao fazer essa pergunta está a transmitir a convicção da importância da vitória e, nalguns escalões de formação, a competição ainda não é o mais importante, mas sim a aprendizagem do desporto em si, a diversão. É importante dar-lhes este suporte e somos todos ativos neste processo de reeducação.

STAR – Qual considera ser o jogador com o perfil psicológico mais adequado para o futebol moderno?

CB – Não há um perfil específico, mas sabe-se que há traços que um atleta pode ter e que o aproximam mais do sucesso. Por exemplo, fazer atribuições causais internas, isto é, quando perde um jogo, atribui isso a uma má performance sua nesse dia, em vez de atribuir a culpa à arbitragem ou à meteorologia. Quando há atribuição causal interna, ele responsabiliza-se individualmente e, ao fazê-lo, passa a tomar conta das suas ações. A motivação intrínseca também, ou seja, ser movido por fatores internos como a paixão, o prazer, o alcance de objetivos pessoais. Também ser orientado para a tarefa e não para o resultado porque isso favorece a adaptação psicológica, visto que, mesmo perante uma derrota na competição, o atleta pode alcançar uma vitória individual. Mais ainda, ter um bom autoconhecimento, perceção da sua competência e autoconfiança. Para além disso, inteligência prática como a capacidade de resolução de problemas e a tomada de decisão e inteligência emocional. Não é possível fornecer uma “receita” de perfil específica, mas estas características podem aproximar o atleta do sucesso.

STAR – Quais as valências que um psicólogo poderá aportar ao trabalho do treinador?

CB – Bom, o treinador está capacitado para diagnosticar, mas não passa desta fase de diagnóstico. Ele identifica, por exemplo, que não há concentração ou confiança, mas sabe resolver isso? Não. Poderá saber algumas coisas, mas não está habilitado. É aí que entra o psicólogo, para complementar com a componente mental. Pode ajudar a traçar o perfil do atleta e fornecer esse conhecimento ao treinador. Para além disso, ajudar a interagir de forma mais adequada ao nível do feedback e instrução. Pode também trabalhar-se diretamente com o treinador coisas relacionadas com estilo de liderança do próprio, estilos de comunicação, verbal ou não verbal, em momento de treino ou de jogo. Ajudar ainda na gestão de expectativas e na gestão emocional… passa por “empoderar” o treinador (chamado “empowerment”). E mesmo a nível mais pessoal, ajudando-o na autorregulação, a ter tempo para si, porque, muitas vezes, envolvem-se no papel de treinador 24 horas por dia. Até porque, nalguns clubes, eles são mais do que treinadores. Contudo, ainda há treinadores que não gostam de trabalhar com o psicólogo, portanto é preciso mudar mentalidades