Janeiro 2021 | Por: Nuno Aguiar-Branco & Tiago F. Silva
A carreira de Luís Lino ainda é curta, porém, aos 28 anos, conta já com uma experiência no outro lado do Mundo e na equipa técnica de um dos grandes treinadores portugueses, André Villas-Boas. Começou como tradutor, hoje é treinador de guarda-redes no Oleiros, onde procura crescer e afirmar-se, paulatinamente. A STAR convidou o jovem técnico para uma conversa, em que recordou algumas das experiências vividas na China e abordou também o presente e o futuro na indústria.
STAR – Tirou um curso de mandarim, foi tradutor, agora é treinador. O futebol foi-se assumindo. Como foram os primeiros passos e de onde vem a paixão?
LUÍS LINO – Estou no futebol desde os meus 6 anos, sempre como guarda-redes. Joguei até aos juniores em Portugal, e um ano fora, como sénior, em Macau, onde fui campeão pelo Sporting e o clube subiu para a 1ª Divisão. Nunca tive uma paixão por futebol, mas sim pela posição de guarda-redes. Não me lembro dos pormenores de génio de jogadores como o Figo, mas sempre me interessei pelos que tinham as luvas. É uma posição para o qual é preciso ser maluco, como dizem, porque a pressão é única. Para mim, era a sensação de liberdade e importância que me dava e que ficou comigo. Infelizmente, tive de abandonar o desporto, por problemas de saúde, e a minha altura também não me deixava perspetivar uma grande carreira como guarda-redes. Tirei o curso superior em tradução português-mandarim, que me possibilitou viver depois três anos e meio entre Pequim, Macau e Shanghai. A confiança para abordar o treino como carreira veio com a experiência de alto nível que tive no Shanghai SIPG. Dizia alguém que o jogo de futebol é dez contra dez, mas quando o guarda-redes assume, passa a ser onze contra dez, alguém vai ter de deslizar, buracos vão abrir. Antigamente era uma posição completamente instintiva, agora o guarda-redes é um atleta, tem de ter conhecimento e um acompanhamento.
STAR – Ainda jovem, teve um contacto importante com o futebol, integrando a equipa técnica do André Villas-Boas, na China. Que balanço fez desse trabalho com um treinador tão consagrado?
L.L. – Foi extremamente positivo. Era tradutor da equipa técnica. Embora não fosse tão competente como um nativo, o André queria alguém de confiança que lhe filtrasse as informações, que lhe dissesse o que acontecia dentro do edifício e da equipa. Era o único que ele conhecia que falava a língua e podia confiar para estar sempre no canto dele. Puseram-me como tradutor de vários departamentos, então pude ver de perto todos eles a trabalhar, não foi apenas nos treinos e nos jogos, também ajudava os guarda-redes,o departamento de scouting e análise, acompanhava reuniões e tratamentos do departamento de fisioterapia, etc. O que aprendi mais foi com a liderança de todos eles. Aprendi como deve ser uma organização de sucesso em todos os patamares. Vinha de uma realidade em que o treinador é uma figura autoritária e solitária, visto que nunca tinha estado num clube com uma “equipa técnica”, e o que mais me admirou foi a dinâmica dentro do staff, entre o staff e a equipa, e acima de tudo, a comunicação do André com os jogadores. Era uma conversa entre adultos, que caminham todos para o mesmo lado. Quando fazia uma substituição, virava-se para o adjunto e perguntava o que achava daquilo, porque, em princípio, ele concordaria e validaria essa decisão, ou, eventualmente, até poderia dizer algo que ele não sabia. Agora vejo-o como algo natural, mas na altura deixou-me muito surpreendido. Lembro-me de se virar para o Óscar no final do jogo e, em vez de lhe dar as típicas indicações, questionou-o sobre a opinião dele e o que é que ele tinha visto que levou a tomar determinada decisão. Ele entra na cabeça dos jogadores e utiliza a maneira de eles pensarem e comunicarem, para assim comunicar melhor com eles. Se o jogador melhorar, melhora o treinador, e é algo que carrego comigo também.
STAR – Guarda alguma recordação mais caricata desses tempos?
L.L. – Tinha histórias para dar e vender (risos). Qualquer história dos jogos com o Guangzhou Evergrande, do Scolari, é fenomenal. Um desses jogos foi quase um duelo de rituais. Eles chegaram e foram para o balneário, que era no mesmo corredor que o nosso, mas sentia-se um cheiro intenso a alho. Entretanto reparei que havia várias cabeças de alho espalhadas. O André sabia que o Scolari é um tipo supersticioso, portanto a primeira coisa que me disse foi para eu apanhar esse alho, e havia-o por todo o lado. Durante esse tempo, já eles no balneário estavam a pensar como haveriam de explorar esse lado deles e ganhar alguma vantagem psicológica. O André então lembrou-se de um ritual qualquer que tinha visto, que envolvia sal, então mandou-me ir ao restaurante, localizado no lobby do hotel que tem dentro do estádio, completamente equipado para o aquecimento, buscar sal para espalhar. Foi absurdo (risos), mas já todos davam ideias, tipo meter água atrás do banco adversário dava azar e tal (risos). Foi uma loucura, mas acho que ganhámos 4-0, portanto funcionou (risos). Qualquer um desses duelos tinha algo para contar.
STAR – Continua no futebol, como treinador de guarda-redes no Oleiros. Como foi o regresso a Portugal?
L.L. – Volto em dezembro de 2017, já decidido a mudar para o futebol a tempo inteiro e sabendo que estava a começar do zero, a nível de conhecimento técnico do treino. Mas canalizei os recursos todos de modo a ganhar esse conhecimento rapidamente. Entrei para os sub-15 do Leixões, onde trabalhei com Vítor Frois e Alexandre Lapa, dois grandes treinadores, que me deram muita liberdade e ensinaram-me muito. Termino esse meio ano e sou recrutado para a Escola Academia Sporting Alfena e Atletico Clube Alfenense, onde treinei todos os guarda-redes desde sub-10 até aos Seniores, e onde cresci mais devido à liberdade que me foi dada para desenvolver a minha metodologia em todas as etapas do crescimento dos guarda-redes. Estive lá dois anos, enquanto assistia a congressos de treino específico e tirava as minhas licenças para treinador de guarda-redes. Estou a completar a licença B, específica de treinador de guarda-redes, na Federação de Futebol Escocesa, a conselho do André, porque assim consigo mesmo uma de treinador de guarda-redes, visto que não teria equivalência se a tirasse cá. Aqui, por exemplo, ou não se tem essa licença, ou tem-se uma de treinador, mas não a específica de treinador de guarda-redes. É uma pena, tendo em conta a quantidade de bons treinadores de guarda-redes que temos. Esta temporada, dei o salto para o Campeonato de Portugal, com a ARC Oleiros, a convite do treinador principal Fábio Pereira. É clube modesto, mas onde se conseguiu reunir as condições para ter uma temporada com muito sucesso. Está a ser uma experiencia nova, que também exige adaptação, mas encontro-me novamente no meio de uma equipa técnica com ambição, com quem eu aprendo diariamente e me identifico. O Fábio confia em mim e no meu trabalho. Ele dá-me muita liberdade, mas também questiona e mostra interesse na minha mentalidade e metodologia, e exige muito dele próprio e de todos nós, o que tem sido o principal potenciador do meu crescimento enquanto treinador esta temporada. Temos também um núcleo de jogadores jovens que aderiram à nossa marca de futebol, que têm qualidade e “fome” de chegar aos patamares principais do futebol, e que têm tido uma ética de trabalho equivalente a profissionais de 1ª Liga.
STAR – Quais as suas referências como treinador?
L.L. – Primeiro o Wil Coort, com quem o André trabalha. O que eu aprendi enquanto jogador e o que aprendi com ele foi totalmente o oposto, ele ensinou-me as bases do estilo de jogo em antecipação, ele é a minha principal referência e continuo a consultá-lo com frequência. A outra referência é o Daniel Araújo, atualmente nos sub-23 do Boavista, e que me recomendou ao Fábio. O Daniel também trabalhou com o Wil, como parte do scouting dos guarda-redes do FC Porto, então temos os três a mesma maneira de pensar e a mesma abordagem. Vejo o sucesso que ambos têm e identifico-me muito com o estilo de jogo que eles ensinam. Já tive também o prazer de ter muitas ajudas, de treinadores de guarda-redes muito experientes, como Hugo Oliveira, Fernando Ferreira e Ricardo Pereira. É uma comunidade que está a ser muito apoiante.
STAR – Que tipo de guarda-redes mais gostava de potenciar?
L.L. – O estilo de jogo do Wil baseia-se muito na antecipação. Sempre me disse que havia dois tipos de guarda-redes: os de reação e os de antecipação. Apesar de a reação ser um estilo muito bonito, em que o atleta está fisicamente disponível, adoro o que ensino acerca da antecipação, partindo da premissa que todas as jogadas têm um início e um seguimento, e que importa ensinar os guarda-redes a identificar o que se está a passar. Há três pilares: visão, ritmo e técnica. Visão, tenho de saber tudo o que se passa no jogo e em todos os momentos, seja onde estão os meus colegas, onde estão os adversários, o que é que eles estão a fazer, onde esta a bola, o resultado, o tempo, os movimentos, tudo. O ritmo dita quando é que ele tem de estar pronto e centrado para reagir, quando é que pode absorver informação e quando é que se pode ajustar em relação à bola. A base técnica tem de ser melhor do que competente para suportar essas ações. Ou seja, quando é altura de agir, tem de conseguir agir naturalmente e de forma eficaz a nível técnico. Enquadrando as três, importa ter o máximo de informação já processada, antecipar e preparar para o momento de tomada de decisão, e quando chega essa altura de tomar uma decisão, perder o mínimo de tempo possível e tomar a decisão correta sem hesitações. Tenho o privilégio de estar com um treinador como o Fábio, que adora jogar em bloco alto, não tem medo de deixar o guarda-redes responsável pelo espaço, e adoro quando ele tem de ter essa carga de responsabilidade no jogo, que o perceba, não tenha medo de jogar numa posição alta e de ser proativo. Adoro um guarda-redes que saiba perceber o jogo. Acho que esse é o maior contributo que posso dar ao arsenal de um guarda-redes, perceber todas as fases do jogo e, mais do que dar forma física, dar um arcaboiço intelectual, que não desvanece com o avançar da carreira.
STAR – Que características se exigem mais num guarda-redes em Portugal?
L.L. – Neste momento, acho que ainda não exigimos o suficiente. Ainda é muito um jogo de bloco médio. O guarda-redes ainda não tem grande responsabilidade na profundidade, mas tem de ser competente no um para um. O domínio do ar é essencial. Os guarda-redes que passam em Portugal são tecnicamente muito bons na defesa da baliza, seja em remates, posicionamento, ritmo, disponibilidade na construção ou em ter uma base sólida tecnicamente. Contudo, tendo em conta a formação que tive, que é ao estilo da escola holandesa, acho que falta ainda muito o sentido de assumir mais o jogo a nível de transições e controlo da profundidade, não por culpa dos próprios guarda-redes, mas do estilo de jogo que lhes é pedido. Acho que são excelentes para equipas que jogam em bloco médio ou bloco baixo, mas é preciso trabalhar mais o controlo das situações longe da baliza e o controlo de profundidade a nível da postura do corpo. Acho que o jogo que se pratica cá não explora esse lado. Nunca se vai moldar um guarda-redes por completo. Lembro-me que o Helton era excelente para jogar num bloco alto, mas o Wil perdia a cabeça ao vê-lo a dominar a bola com a parte de fora do pé. Um guarda-redes pode ser bom entre os postes, mas o Wil tem muito essa qualidade de ensiná-los a subir no campo. Qualquer um que foi treinado por ele, diz exatamente a mesma coisa nas entrevistas. O André e o Wil procuram sempre o perfil de um guarda-redes inteligente e forte na defesa da baliza, para depois ensinar a jogar mais à frente. Eu faço isso também com os guarda-redes que treino atualmente. Se um guarda-redes não sai, a defesa vai ter também dificuldades em jogar num bloco alto, o que limita as opções do treinador e também da projeção desse guarda-redes para outros patamares ou equipas.
STAR – E o tamanho do guarda-redes, realmente importa?
L.L. – Contra mim falo, mas sim. Não têm de ser extraordinariamente grandes, mas existe um requisito de tamanho, de facto. Infelizmente há alguma injustiça, porque treinei excelentes guarda-redes que não conseguem progredir para outros níveis, devido a serem baixos. Na altura de defender a baliza, por vezes mostram falta de alcance e não há reação ou capacidade de impulsão que consiga anular isso. Daí gostar tanto da maneira como fui ensinado a trabalhar, porque tentamos resolver problemas antes que eles se tornem problemas. Se puder impedir um remate dentro da área ao jogar mais alto, estando pronto para intercetar um passe em profundidade, ou manipulando e orientando a defesa de modo a que não se consiga criar uma oportunidade de perigo, então é menos uma defesa que tenho de fazer ou menos um golo que sofro. Independentemente da altura, os guarda-redes têm de conseguir utilizar todos os recursos que têm disponíveis para se colocarem nas situações em que são mais fortes. É incrível a quantidade de guarda-redes no Campeonato de Portugal que não indica qual é o pé forte do jogador que está a rematar, numa situação de um para um ou dois para dois. Se sei que é muito bom com o pé direito, então o defesa tem de lhe bloquear o direito. Portanto, antes dos jogos, é importante perceber quais são as tendências dos homens mais avançados, o que mais gostam de fazer no último terço, quais são os que provocam desequilíbrios. Dar esta espécie de fotografia também aprendi no período que passei na equipa do André.
STAR – O que perspetiva para a sua carreira a curto e a longo prazo?
L.L. – Neste momento, ser treinador principal seria uma coisa altamente intimidante. Costumo dizer, na brincadeira, que estou muito bem a lidar com três ou quatro, não preciso de lidar com mais. Quero ir avançando com as licenças e continuar a aprender e a trabalhar com pessoas excelentes. O meu objetivo de carreira é chegar à Liga dos Campeões e meter o pé na porta, depois o céu é o limite. A curto prazo quero ter boas épocas no Campeonato de Portugal, continuar a subir e a chegar até onde a bola role mais rápido. Acima de tudo, conseguir estar sempre com pessoas com que consiga aprender, nunca quererei ser a pessoa que sabe mais numa sala. Quero sempre rodear-me de pessoas como o Fábio Pereira e os adjuntos, que me vão ajudar a subir, esperando também poder contribuir para eles. Gostava imenso de voltar a trabalhar com o André Villas-Boas, mas sei que é pouco provável. Se conseguir chegar a um ponto em que jogue contra ele, já me dou por incrivelmente satisfeito.
STAR – Qual foi o jogador ou jogadores que mais o marcaram e a fizeram apaixonar pelo futebol desde novo? O que o deslumbrava mais?
L.L. – Podia passar horas a ver compilações do Vítor Baía. Era incrível ver o Vítor Baía a defender remates na área, fora da pequena área. Era a vaidade, com um perfil muito estoico, quase heroico, então gostava muito.
A carreira de Luís Lino ainda é curta, porém, aos 28 anos, conta já com uma experiência no outro lado do Mundo e na equipa técnica de um dos grandes treinadores portugueses, André Villas-Boas. Começou como tradutor, hoje é treinador de guarda-redes no Oleiros, onde procura crescer e afirmar-se, paulatinamente. A STAR convidou o jovem técnico para uma conversa, em que recordou algumas das experiências vividas na China e abordou também o presente e o futuro na indústria.
STAR – Tirou um curso de mandarim, foi tradutor, agora é treinador. O futebol foi-se assumindo. Como foram os primeiros passos e de onde vem a paixão?
LUÍS LINO – Estou no futebol desde os meus 6 anos, sempre como guarda-redes. Joguei até aos juniores em Portugal, e um ano fora, como sénior, em Macau, onde fui campeão pelo Sporting e o clube subiu para a 1ª Divisão. Nunca tive uma paixão por futebol, mas sim pela posição de guarda-redes. Não me lembro dos pormenores de génio de jogadores como o Figo, mas sempre me interessei pelos que tinham as luvas. É uma posição para o qual é preciso ser maluco, como dizem, porque a pressão é única. Para mim, era a sensação de liberdade e importância que me dava e que ficou comigo. Infelizmente, tive de abandonar o desporto, por problemas de saúde, e a minha altura também não me deixava perspetivar uma grande carreira como guarda-redes. Tirei o curso superior em tradução português-mandarim, que me possibilitou viver depois três anos e meio entre Pequim, Macau e Shanghai. A confiança para abordar o treino como carreira veio com a experiência de alto nível que tive no Shanghai SIPG. Dizia alguém que o jogo de futebol é dez contra dez, mas quando o guarda-redes assume, passa a ser onze contra dez, alguém vai ter de deslizar, buracos vão abrir. Antigamente era uma posição completamente instintiva, agora o guarda-redes é um atleta, tem de ter conhecimento e um acompanhamento.
STAR – Ainda jovem, teve um contacto importante com o futebol, integrando a equipa técnica do André Villas-Boas, na China. Que balanço fez desse trabalho com um treinador tão consagrado?
L.L. – Foi extremamente positivo. Era tradutor da equipa técnica. Embora não fosse tão competente como um nativo, o André queria alguém de confiança que lhe filtrasse as informações, que lhe dissesse o que acontecia dentro do edifício e da equipa. Era o único que ele conhecia que falava a língua e podia confiar para estar sempre no canto dele. Puseram-me como tradutor de vários departamentos, então pude ver de perto todos eles a trabalhar, não foi apenas nos treinos e nos jogos, também ajudava os guarda-redes,o departamento de scouting e análise, acompanhava reuniões e tratamentos do departamento de fisioterapia, etc. O que aprendi mais foi com a liderança de todos eles. Aprendi como deve ser uma organização de sucesso em todos os patamares. Vinha de uma realidade em que o treinador é uma figura autoritária e solitária, visto que nunca tinha estado num clube com uma “equipa técnica”, e o que mais me admirou foi a dinâmica dentro do staff, entre o staff e a equipa, e acima de tudo, a comunicação do André com os jogadores. Era uma conversa entre adultos, que caminham todos para o mesmo lado. Quando fazia uma substituição, virava-se para o adjunto e perguntava o que achava daquilo, porque, em princípio, ele concordaria e validaria essa decisão, ou, eventualmente, até poderia dizer algo que ele não sabia. Agora vejo-o como algo natural, mas na altura deixou-me muito surpreendido. Lembro-me de se virar para o Óscar no final do jogo e, em vez de lhe dar as típicas indicações, questionou-o sobre a opinião dele e o que é que ele tinha visto que levou a tomar determinada decisão. Ele entra na cabeça dos jogadores e utiliza a maneira de eles pensarem e comunicarem, para assim comunicar melhor com eles. Se o jogador melhorar, melhora o treinador, e é algo que carrego comigo também.
STAR – Guarda alguma recordação mais caricata desses tempos?
L.L. – Tinha histórias para dar e vender (risos). Qualquer história dos jogos com o Guangzhou Evergrande, do Scolari, é fenomenal. Um desses jogos foi quase um duelo de rituais. Eles chegaram e foram para o balneário, que era no mesmo corredor que o nosso, mas sentia-se um cheiro intenso a alho. Entretanto reparei que havia várias cabeças de alho espalhadas. O André sabia que o Scolari é um tipo supersticioso, portanto a primeira coisa que me disse foi para eu apanhar esse alho, e havia-o por todo o lado. Durante esse tempo, já eles no balneário estavam a pensar como haveriam de explorar esse lado deles e ganhar alguma vantagem psicológica. O André então lembrou-se de um ritual qualquer que tinha visto, que envolvia sal, então mandou-me ir ao restaurante, localizado no lobby do hotel que tem dentro do estádio, completamente equipado para o aquecimento, buscar sal para espalhar. Foi absurdo (risos), mas já todos davam ideias, tipo meter água atrás do banco adversário dava azar e tal (risos). Foi uma loucura, mas acho que ganhámos 4-0, portanto funcionou (risos). Qualquer um desses duelos tinha algo para contar.
STAR – Continua no futebol, como treinador de guarda-redes no Oleiros. Como foi o regresso a Portugal?
L.L. – Volto em dezembro de 2017, já decidido a mudar para o futebol a tempo inteiro e sabendo que estava a começar do zero, a nível de conhecimento técnico do treino. Mas canalizei os recursos todos de modo a ganhar esse conhecimento rapidamente. Entrei para os sub-15 do Leixões, onde trabalhei com Vítor Frois e Alexandre Lapa, dois grandes treinadores, que me deram muita liberdade e ensinaram-me muito. Termino esse meio ano e sou recrutado para a Escola Academia Sporting Alfena e Atletico Clube Alfenense, onde treinei todos os guarda-redes desde sub-10 até aos Seniores, e onde cresci mais devido à liberdade que me foi dada para desenvolver a minha metodologia em todas as etapas do crescimento dos guarda-redes. Estive lá dois anos, enquanto assistia a congressos de treino específico e tirava as minhas licenças para treinador de guarda-redes. Estou a completar a licença B, específica de treinador de guarda-redes, na Federação de Futebol Escocesa, a conselho do André, porque assim consigo mesmo uma de treinador de guarda-redes, visto que não teria equivalência se a tirasse cá. Aqui, por exemplo, ou não se tem essa licença, ou tem-se uma de treinador, mas não a específica de treinador de guarda-redes. É uma pena, tendo em conta a quantidade de bons treinadores de guarda-redes que temos. Esta temporada, dei o salto para o Campeonato de Portugal, com a ARC Oleiros, a convite do treinador principal Fábio Pereira. É clube modesto, mas onde se conseguiu reunir as condições para ter uma temporada com muito sucesso. Está a ser uma experiencia nova, que também exige adaptação, mas encontro-me novamente no meio de uma equipa técnica com ambição, com quem eu aprendo diariamente e me identifico. O Fábio confia em mim e no meu trabalho. Ele dá-me muita liberdade, mas também questiona e mostra interesse na minha mentalidade e metodologia, e exige muito dele próprio e de todos nós, o que tem sido o principal potenciador do meu crescimento enquanto treinador esta temporada. Temos também um núcleo de jogadores jovens que aderiram à nossa marca de futebol, que têm qualidade e “fome” de chegar aos patamares principais do futebol, e que têm tido uma ética de trabalho equivalente a profissionais de 1ª Liga.
STAR – Quais as suas referências como treinador?
L.L. – Primeiro o Wil Coort, com quem o André trabalha. O que eu aprendi enquanto jogador e o que aprendi com ele foi totalmente o oposto, ele ensinou-me as bases do estilo de jogo em antecipação, ele é a minha principal referência e continuo a consultá-lo com frequência. A outra referência é o Daniel Araújo, atualmente nos sub-23 do Boavista, e que me recomendou ao Fábio. O Daniel também trabalhou com o Wil, como parte do scouting dos guarda-redes do FC Porto, então temos os três a mesma maneira de pensar e a mesma abordagem. Vejo o sucesso que ambos têm e identifico-me muito com o estilo de jogo que eles ensinam. Já tive também o prazer de ter muitas ajudas, de treinadores de guarda-redes muito experientes, como Hugo Oliveira, Fernando Ferreira e Ricardo Pereira. É uma comunidade que está a ser muito apoiante.
STAR – Que tipo de guarda-redes mais gostava de potenciar?
L.L. – O estilo de jogo do Wil baseia-se muito na antecipação. Sempre me disse que havia dois tipos de guarda-redes: os de reação e os de antecipação. Apesar de a reação ser um estilo muito bonito, em que o atleta está fisicamente disponível, adoro o que ensino acerca da antecipação, partindo da premissa que todas as jogadas têm um início e um seguimento, e que importa ensinar os guarda-redes a identificar o que se está a passar. Há três pilares: visão, ritmo e técnica. Visão, tenho de saber tudo o que se passa no jogo e em todos os momentos, seja onde estão os meus colegas, onde estão os adversários, o que é que eles estão a fazer, onde esta a bola, o resultado, o tempo, os movimentos, tudo. O ritmo dita quando é que ele tem de estar pronto e centrado para reagir, quando é que pode absorver informação e quando é que se pode ajustar em relação à bola. A base técnica tem de ser melhor do que competente para suportar essas ações. Ou seja, quando é altura de agir, tem de conseguir agir naturalmente e de forma eficaz a nível técnico. Enquadrando as três, importa ter o máximo de informação já processada, antecipar e preparar para o momento de tomada de decisão, e quando chega essa altura de tomar uma decisão, perder o mínimo de tempo possível e tomar a decisão correta sem hesitações. Tenho o privilégio de estar com um treinador como o Fábio, que adora jogar em bloco alto, não tem medo de deixar o guarda-redes responsável pelo espaço, e adoro quando ele tem de ter essa carga de responsabilidade no jogo, que o perceba, não tenha medo de jogar numa posição alta e de ser proativo. Adoro um guarda-redes que saiba perceber o jogo. Acho que esse é o maior contributo que posso dar ao arsenal de um guarda-redes, perceber todas as fases do jogo e, mais do que dar forma física, dar um arcaboiço intelectual, que não desvanece com o avançar da carreira.
STAR – Que características se exigem mais num guarda-redes em Portugal?
L.L. – Neste momento, acho que ainda não exigimos o suficiente. Ainda é muito um jogo de bloco médio. O guarda-redes ainda não tem grande responsabilidade na profundidade, mas tem de ser competente no um para um. O domínio do ar é essencial. Os guarda-redes que passam em Portugal são tecnicamente muito bons na defesa da baliza, seja em remates, posicionamento, ritmo, disponibilidade na construção ou em ter uma base sólida tecnicamente. Contudo, tendo em conta a formação que tive, que é ao estilo da escola holandesa, acho que falta ainda muito o sentido de assumir mais o jogo a nível de transições e controlo da profundidade, não por culpa dos próprios guarda-redes, mas do estilo de jogo que lhes é pedido. Acho que são excelentes para equipas que jogam em bloco médio ou bloco baixo, mas é preciso trabalhar mais o controlo das situações longe da baliza e o controlo de profundidade a nível da postura do corpo. Acho que o jogo que se pratica cá não explora esse lado. Nunca se vai moldar um guarda-redes por completo. Lembro-me que o Helton era excelente para jogar num bloco alto, mas o Wil perdia a cabeça ao vê-lo a dominar a bola com a parte de fora do pé. Um guarda-redes pode ser bom entre os postes, mas o Wil tem muito essa qualidade de ensiná-los a subir no campo. Qualquer um que foi treinado por ele, diz exatamente a mesma coisa nas entrevistas. O André e o Wil procuram sempre o perfil de um guarda-redes inteligente e forte na defesa da baliza, para depois ensinar a jogar mais à frente. Eu faço isso também com os guarda-redes que treino atualmente. Se um guarda-redes não sai, a defesa vai ter também dificuldades em jogar num bloco alto, o que limita as opções do treinador e também da projeção desse guarda-redes para outros patamares ou equipas.
STAR – E o tamanho do guarda-redes, realmente importa?
L.L. – Contra mim falo, mas sim. Não têm de ser extraordinariamente grandes, mas existe um requisito de tamanho, de facto. Infelizmente há alguma injustiça, porque treinei excelentes guarda-redes que não conseguem progredir para outros níveis, devido a serem baixos. Na altura de defender a baliza, por vezes mostram falta de alcance e não há reação ou capacidade de impulsão que consiga anular isso. Daí gostar tanto da maneira como fui ensinado a trabalhar, porque tentamos resolver problemas antes que eles se tornem problemas. Se puder impedir um remate dentro da área ao jogar mais alto, estando pronto para intercetar um passe em profundidade, ou manipulando e orientando a defesa de modo a que não se consiga criar uma oportunidade de perigo, então é menos uma defesa que tenho de fazer ou menos um golo que sofro. Independentemente da altura, os guarda-redes têm de conseguir utilizar todos os recursos que têm disponíveis para se colocarem nas situações em que são mais fortes. É incrível a quantidade de guarda-redes no Campeonato de Portugal que não indica qual é o pé forte do jogador que está a rematar, numa situação de um para um ou dois para dois. Se sei que é muito bom com o pé direito, então o defesa tem de lhe bloquear o direito. Portanto, antes dos jogos, é importante perceber quais são as tendências dos homens mais avançados, o que mais gostam de fazer no último terço, quais são os que provocam desequilíbrios. Dar esta espécie de fotografia também aprendi no período que passei na equipa do André.
STAR – O que perspetiva para a sua carreira a curto e a longo prazo?
L.L. – Neste momento, ser treinador principal seria uma coisa altamente intimidante. Costumo dizer, na brincadeira, que estou muito bem a lidar com três ou quatro, não preciso de lidar com mais. Quero ir avançando com as licenças e continuar a aprender e a trabalhar com pessoas excelentes. O meu objetivo de carreira é chegar à Liga dos Campeões e meter o pé na porta, depois o céu é o limite. A curto prazo quero ter boas épocas no Campeonato de Portugal, continuar a subir e a chegar até onde a bola role mais rápido. Acima de tudo, conseguir estar sempre com pessoas com que consiga aprender, nunca quererei ser a pessoa que sabe mais numa sala. Quero sempre rodear-me de pessoas como o Fábio Pereira e os adjuntos, que me vão ajudar a subir, esperando também poder contribuir para eles. Gostava imenso de voltar a trabalhar com o André Villas-Boas, mas sei que é pouco provável. Se conseguir chegar a um ponto em que jogue contra ele, já me dou por incrivelmente satisfeito.
STAR – Qual foi o jogador ou jogadores que mais o marcaram e a fizeram apaixonar pelo futebol desde novo? O que o deslumbrava mais?
L.L. – Podia passar horas a ver compilações do Vítor Baía. Era incrível ver o Vítor Baía a defender remates na área, fora da pequena área. Era a vaidade, com um perfil muito estoico, quase heroico, então gostava muito.