Setembro 2020 | Por: Nuno Aguiar-Branco & Tiago F. Silva
Se o talento português cresceu a olhos vistos nos últimos anos, muito desse sucesso se deve aos homens que o recebem e encaminham. Falamos, naturalmente, dos treinadores. Nuno Braga enveredou cedo pela carreira de treinador e, apesar de já contar com experiências na Liga NOS, foi na vertente da formação que trilhou grande parte do seu percurso profissional, com passagens por FC Porto, Rio Ave ou Leixões. Em conversa com a STAR, o técnico de 31 anos partilhou a sua visão sobre a formação de talento em Portugal e apontou o caminho para o futuro da mesma.
1. O que o levou a enveredar pelo futebol de formação ainda em tenra idade?
Ninguém nasce a dizer que quer ser treinador de futebol, eu gostava de jogar futebol, mas houve um clique que se deu com o FC Porto campeão europeu, e, principalmente no ano anterior. Aí pensei que talvez tivesse mais jeito como treinador do que como jogador, porque conseguia entender muitas coisas, despertando mais o interesse no treino e na sua interação com o jogo. Entre 2002 e 2003 houve uma mudança brutal no FC Porto, relativa ao treino e ao treinador, José Mourinho. Entretanto, acabado de fazer 18 anos, resolvi então tirar o curso de treinadores da AF Porto, onde, posteriormente, me convidaram a fazer parte das equipas técnicas das seleções distritais jovens. O curso correu bem e fui estagiar com o Vítor Pereira, à época treinador dos sub-14 do FC Porto. Fiquei maravilhado, era uma criança quase, e vi aqueles miúdos todos a jogar com muita qualidade, entre os quais o Gonçalo Paciência. Fui estudar para Itália e, quando vim, ingressei na formação do FC Porto, onde passei três anos. Depois fui para o Portimonense, a primeira experiência nos seniores. Ali tive a oportunidade, mas não estava tão bem preparado como estou hoje. Então, senti necessidade de voltar à formação e preparar-me mais. Outra oportunidade nos seniores surgiu com o convite do Manuel Machado para o Arouca (da I Liga). Os resultados não ajudaram, então voltei para a formação, porque queria fazer o estágio para o curso de nível 3 e era necessário um ano inteiro com estabilidade e nos seniores era mais difícil tê-la. Depois disso, novamente nos seniores, ainda treinei na distrital, primeiro no Aliados do Lordelo e depois na seleção distrital do Porto. A formação foi a oportunidade de começar e de construir uma carreira, porque a meio houve tentativas de ir mais alto, mas permitiu-me tropeçar e voltar lá para baixo. Mas também gosto da adrenalina. Um dia se perdermos a pressão, não andamos a fazer nada aqui.
2. O que mais aprecia no trabalho desenvolvido nessa vertente?
Um trabalho de formação quando é bem feito, penso que seja aquilo que mais preenche um treinador. No futebol sénior há a adrenalina do resultado, na formação é totalmente diferente. Quando vemos um jovem atleta entrar e ter dificuldade em algo simples, ou determinados comportamentos, mas depois conseguirmos observar a sua evolução no tempo, é algo que dá satisfação. Não cortar o que o jovem atleta quer e o que ele é, mas sim ter de o evoluir dentro do que ele é. Isso para mim é o mais bonito do futebol de formação. Espero que nunca se lembrem de pôr números na formação. No dia em que isso acontecer, vão estragá-la ainda mais.
3. Teme que a componente analítica prejudique o processo de formação?
A componente analítica não, mas a formatação sim. Para mim, formação tem de ser competição, mas também felicidade e diversão. Têm de andar juntas, uma sem a outra não fazem uma boa formação. Quando o nosso compromisso enquanto treinadores for para com o jogador e não com o resultado, veremos uma evolução maior dos jogadores. Se olharmos para o treino com um teor “resultadista”, perderemos a essência do futebol de formação. A competitividade tem de ser incutida, mas o nosso foco tem de ser a evolução do comportamento deles. Temos de exigir deles, mas não podemos olhar só para os números. Quantos atletas na primeira divisão nacional de juvenis nasceram no primeiro trimestre? E quantos atletas nasceram no segundo semestre? Aposto que há mais jogadores do primeiro trimestre. Porque olhamos só para o número que o jogador nos dá, ao invés do talento. Há uma grande diferença entre um miúdo nascido em janeiro e outro a dezembro, porque sete ou oito meses com 15 anos é muita diferença. É natural que um jogador mais evoluído, do ponto de vista de maturidade física e mental, produza números melhores do que outro mais novo. O número de decisões corretas que um miúdo mais velho um ano terá, naturalmente é maior. Há quem tenha contornado isso, mas têm de ser mesmo bons, não podem ser mais ou menos sequer, porque esses vão embora. No inverso, há muitos de janeiro e fevereiro que conseguem ficar sendo apenas do lote dos mais ou menos. Isto acontece em determinada idade, depois com o crescimento vai esvanecendo, mas, entretanto, muitos desistiram.
4. Que traço futebolístico e também psicológico mais lhe agrada quando perspetiva a carreira de um jovem atleta?
Tem de ser competitivo, querer ganhar. O que distingue quem fica e quem vai e vem é o índice de competitividade. Os que são extremamente competitivos se calhar são difíceis de aturar e viram uma dor de cabeça para o treinador, mas ficam lá. Em termos futebolísticos, depende. É preciso qualidade técnica, que, para mim, significa colocar em prática todos os atributos possíveis num determinado contexto tático que permitem que a sua equipa retire vantagem deles. Portanto, qualidade técnica e competitividade, e isto tudo é independente do modelo de jogo. Quando conseguimos conciliar tudo temos um Ronaldo ou um Messi.
5. Muitas vezes se fala da pressão acrescida que os jovens trazem de casa, com muitos pais a colocarem um peso nos ombros deles. Em que medida isso pode afetar o crescimento e o rendimento do jovem atleta?
De muitas maneiras. Temos até exemplos fora do futebol, de desportos que exigem mais horas de treino para chegar à elite. A esses é exigido chegar à elite e eles chegam lá e cedo, mas depois desistem. E porquê? Porque se calhar nunca viveram o que os outros da idade dele viviam. No futebol isso não acontece tanto, logo a começar porque as horas de treino não são tantas como noutros desportos. Mas, muitas vezes, estamos à espera que, em nossa casa, nasça a pessoa que nós não fomos. Eu queria ser jogador de futebol, mas não consegui ser, então quero que o meu filho seja o melhor jogador do mundo e incuto aquilo no miúdo. Muitas vezes até chegam ao final do jogo e a primeira preocupação não é dar comida ao filho e saber se ele está bem, é fazer observações sobre o jogo que ele fez. O miúdo se calhar até já vinha pressionado pela presença dos pais nas bancadas, e isto acontece, como depois ainda tem de ouvir as observações dos pais. Ora, cabe a eles saber como são os filhos deles, saber se ele gosta ou não de falar do jogo no final ou se reage bem às observações ou não. Tem de se respeitar o jovem. E, muitas vezes, surge o abandono do futebol por culpa de dois agentes, pais e treinadores, porque, por vezes, estes últimos também têm culpa. Há muitos miúdos que deixam de treinar porque ficam fartos. Os pais têm de ser pais, não podem ser treinadores, porque isso vai estragar o miúdo ao colocar pressão desnecessária. O pai quer ser treinador, mas o treinador não quer ser pai do miúdo fora do campo, então tudo isto gera conflito na cabeça do miúdo, porque deixam de saber a quem dar ouvidos e para que lado seguir.
6. A aposta em jovens da formação que tem vindo a verificar-se na generalidade dos clubes portugueses, indica que o paradigma no futebol mudou em definitivo ou será algo passageiro que advém de uma fase financeiramente mais vulnerável?
Vivemos um pouco por ondas. Agora veio esta onda, como nos anos 80 e no início do milénio. Pelo meio tivemos os anos 90, com a chegada de muitos estrangeiros. Neste momento é o futebol de formação. A meu ver é por necessidade, porque até já tivemos outras gerações tão fortes como a atual. Existe qualidade sim, mas hoje o jogador estrangeiro também está mais caro, por exemplo. Financeiramente também não temos a mesma capacidade de resposta como tínhamos antes. Até porque, por exemplo, o Real Madrid de hoje arrisca mais e vai à origem, já não compra a clubes de menor dimensão, que eram entrepostos. Portanto, penso que é passageiro, infelizmente, porque temos qualidade para mais e melhor.
7. Atualmente, o talento jovem dos atletas portugueses está já no top-5 dos mais procurados, ou estará ainda a caminhar progressivamente para tal?
Existem pessoas que naturalmente têm mais jeito para uma determinada atividade do que outras. Não acredito que haja uma diferença percentual tão acentuada entre países, em matéria de talento. Aqui existe talento na formação, em atletas e treinadores, mas existe uma política incorreta na formação em Portugal. Em Inglaterra, de há uns anos para cá, apostou-se num determinado tipo de formação e hoje estão a colher frutos. E tudo porque diminuíram o número de clubes e aumentaram o número de academias. Quem é mesmo bom frequenta clubes, mas quem não é tão bom não fica esquecido, porque existem as academias. Mais cedo ou mais tarde, se eles forem bons, serão chamados também, mas já não têm pressão. Outra coisa, lá não há campeonatos para todos os escalões. Têm muitos torneios e querem ganhá-los, mas se não ganharem esse, ganham o próximo. Se existirem vários torneios, provavelmente jogarão mais jogos do que os nossos miúdos em sistema de campeonato e, esses, porventura, serão até mais competitivos do que os do nosso campeonato, em que temos um FC Porto a defrontar o Sra. Da Hora e a dar 25-0, suponhamos. Qual a evolução de um miúdo do Sra. Da Hora a defrontar o FC Porto? Nem conseguimos ver qual o nível dele lá, porque nem irá tocar na bola, e isso pode conduzir ao abandono. E isto acontece até aos sub-15 ou sub-16. Mesmo até nos campeonatos nacionais isto acontece, porque um FC Porto, na primeira fase, tem um ou dois adversários reais, o resto é quase um passeio. Ao passo que, em Inglaterra, nesses torneios, colocam miúdos nivelados a defrontar-se entre si. Temos muita qualidade, mas não concordo com a maneira como formamos. Tem de haver diminuição de clubes e aumento de academias, para incutir motivação e evitar o abandono. O modelo competitivo na formação está errado.
8. Começou na formação, mas soma já experiência numa equipa da Liga NOS, à época o Arouca, ainda que como adjunto. Como foi dar esse salto?
Em primeiro lugar a qualidade técnica. Não existe quem não saiba receber uma bola lá. Em segundo lugar a competitividade. Até no jogo da “pataleca” era competitivo. Mas com alguma componente de diversão, mediante a personalidade de alguns jogadores. Mas todos queriam ganhar. Se disser aos miúdos que na primeira divisão de juniores, metade dos jogadores não cabe na Divisão de Elite da AF Porto, as pessoas vão achar que estou a exagerar, mas é essa realidade. Em Portugal há qualidade individual e preocupação em formar. Depois, a competitividade, aliada à qualidade técnica, faz com que alguns cheguem ao topo e fiquem lá mais tempo do que outros. Na I Liga eu vi essa capacidade de realizar todos os exercícios que planeávamos, sempre de forma competitiva, com diversão e muita qualidade técnica. Aprendemos muito com os próprios jogadores. Acho que os nossos miúdos não têm noção da qualidade que é necessária para lá chegar.
9. No que diz respeito ao talento que se vem observando no segmento de jovens treinadores em Portugal, sente que ainda necessita de ser “marketizado” de forma a ser equiparado ao talento dos jovens atletas ou pensa que correm em paralelo aos olhos do público em geral?
Não acho que corram em paralelo e, honestamente, acho que nunca deverão correr. No dia em que quisermos dar mais importância ao treinador do que aquela que ele já tem, ainda teremos treinadores mais “resultadistas” na formação, a menos que essa avaliação não seja feita com base em números, volto a frisar. Quando “marketizarmos” o treinador de formação, nesse dia vamos matá-la de vez em Portugal. Nesse dia só o jovem atleta maturado chegará ao topo, do que depender do treinador, porque a ganância e a necessidade de crescer passará a ser demasiado grande. O treinador não deve ter mais importância do que aquela que já tem. De resto, é ir progredindo. Às vezes não nos sentimos valorizados, é verdade, mas temos de batalhar.
10. Quem é a sua inspiração como treinador?
Como para 99% dos portugueses que tiraram o curso de Educação Física e enveredaram pelo futebol naquela altura, há um culpado, José Mourinho. A partir daí, vou beber um pouco de todos. Vou ao treino do Leeds e penso nos pormenores do Bielsa que se revelam “pormaiores” em jogo. Vou às equipas do Guardiola e vejo que têm todas a mesma matriz de jogo, mas uma matriz tática totalmente diferente. Vou à paixão que o Klopp mete em tudo o que há no jogo. Vou ao Ancelotti para ver um homem que nunca perde a postura. Vou à criatividade do Sarri. Bebo de todos e penso que em determinada questão gostava de ser parecido com um ou com outro.
11. No panorama do futebol português, qual foi o jogador que mais o impressionou ver jogar e por que razão lhe deixou essa marca?
Deco: O jogo tem que ser visto como um todo em que se exponenciam, naturalmente, as partes. Nesse contexto penso que o jogador que mais me marcou foi o Deco. Provavelmente, não foi o melhor jogador que vi jogar, mas por tudo aquilo que significava no FC Porto de 2003 e 2004, a forma como jogava, como empurrava a equipa, a forma apaixonada como tratava a bola. Era um líder autêntico dentro de campo, porque era o expoente máximo de um todo muito forte. Tenho até um cão chamado Deco.
Ricardo Quaresma: Em termos de criatividade, foi o jogador que mais se recriou no campo em Portugal. Não me lembro de um jogador que fizesse tantas coisas diferentes em campo. Não é só fintar para a direita ou para a esquerda, é o fazer isso e meter uma trivela a seguir ou uma de letra, mas tudo com um intuito tático. Não é tecnicamente desenvolvido, todo ele é desenvolvido, por ele todo. A equipa tira sempre uma vantagem tática do comportamento dele em campo. Não há um momento em que não exista o retirar de uma vantagem tática por ele estar em campo. Até pode estar parado. A forma como ele se mexe ou dribla vai levar a isso. Não joga só bonito, é, efetivamente, competente e eficiente.
Se o talento português cresceu a olhos vistos nos últimos anos, muito desse sucesso se deve aos homens que o recebem e encaminham. Falamos, naturalmente, dos treinadores. Nuno Braga enveredou cedo pela carreira de treinador e, apesar de já contar com experiências na Liga NOS, foi na vertente da formação que trilhou grande parte do seu percurso profissional, com passagens por FC Porto, Rio Ave ou Leixões. Em conversa com a STAR, o técnico de 31 anos partilhou a sua visão sobre a formação de talento em Portugal e apontou o caminho para o futuro da mesma.
1. O que o levou a enveredar pelo futebol de formação ainda em tenra idade?
Ninguém nasce a dizer que quer ser treinador de futebol, eu gostava de jogar futebol, mas houve um clique que se deu com o FC Porto campeão europeu, e, principalmente no ano anterior. Aí pensei que talvez tivesse mais jeito como treinador do que como jogador, porque conseguia entender muitas coisas, despertando mais o interesse no treino e na sua interação com o jogo. Entre 2002 e 2003 houve uma mudança brutal no FC Porto, relativa ao treino e ao treinador, José Mourinho. Entretanto, acabado de fazer 18 anos, resolvi então tirar o curso de treinadores da AF Porto, onde, posteriormente, me convidaram a fazer parte das equipas técnicas das seleções distritais jovens. O curso correu bem e fui estagiar com o Vítor Pereira, à época treinador dos sub-14 do FC Porto. Fiquei maravilhado, era uma criança quase, e vi aqueles miúdos todos a jogar com muita qualidade, entre os quais o Gonçalo Paciência. Fui estudar para Itália e, quando vim, ingressei na formação do FC Porto, onde passei três anos. Depois fui para o Portimonense, a primeira experiência nos seniores. Ali tive a oportunidade, mas não estava tão bem preparado como estou hoje. Então, senti necessidade de voltar à formação e preparar-me mais. Outra oportunidade nos seniores surgiu com o convite do Manuel Machado para o Arouca (da I Liga). Os resultados não ajudaram, então voltei para a formação, porque queria fazer o estágio para o curso de nível 3 e era necessário um ano inteiro com estabilidade e nos seniores era mais difícil tê-la. Depois disso, novamente nos seniores, ainda treinei na distrital, primeiro no Aliados do Lordelo e depois na seleção distrital do Porto. A formação foi a oportunidade de começar e de construir uma carreira, porque a meio houve tentativas de ir mais alto, mas permitiu-me tropeçar e voltar lá para baixo. Mas também gosto da adrenalina. Um dia se perdermos a pressão, não andamos a fazer nada aqui.
2. O que mais aprecia no trabalho desenvolvido nessa vertente?
Um trabalho de formação quando é bem feito, penso que seja aquilo que mais preenche um treinador. No futebol sénior há a adrenalina do resultado, na formação é totalmente diferente. Quando vemos um jovem atleta entrar e ter dificuldade em algo simples, ou determinados comportamentos, mas depois conseguirmos observar a sua evolução no tempo, é algo que dá satisfação. Não cortar o que o jovem atleta quer e o que ele é, mas sim ter de o evoluir dentro do que ele é. Isso para mim é o mais bonito do futebol de formação. Espero que nunca se lembrem de pôr números na formação. No dia em que isso acontecer, vão estragá-la ainda mais.
3. Teme que a componente analítica prejudique o processo de formação?
A componente analítica não, mas a formatação sim. Para mim, formação tem de ser competição, mas também felicidade e diversão. Têm de andar juntas, uma sem a outra não fazem uma boa formação. Quando o nosso compromisso enquanto treinadores for para com o jogador e não com o resultado, veremos uma evolução maior dos jogadores. Se olharmos para o treino com um teor “resultadista”, perderemos a essência do futebol de formação. A competitividade tem de ser incutida, mas o nosso foco tem de ser a evolução do comportamento deles. Temos de exigir deles, mas não podemos olhar só para os números. Quantos atletas na primeira divisão nacional de juvenis nasceram no primeiro trimestre? E quantos atletas nasceram no segundo semestre? Aposto que há mais jogadores do primeiro trimestre. Porque olhamos só para o número que o jogador nos dá, ao invés do talento. Há uma grande diferença entre um miúdo nascido em janeiro e outro a dezembro, porque sete ou oito meses com 15 anos é muita diferença. É natural que um jogador mais evoluído, do ponto de vista de maturidade física e mental, produza números melhores do que outro mais novo. O número de decisões corretas que um miúdo mais velho um ano terá, naturalmente é maior. Há quem tenha contornado isso, mas têm de ser mesmo bons, não podem ser mais ou menos sequer, porque esses vão embora. No inverso, há muitos de janeiro e fevereiro que conseguem ficar sendo apenas do lote dos mais ou menos. Isto acontece em determinada idade, depois com o crescimento vai esvanecendo, mas, entretanto, muitos desistiram.
4. Que traço futebolístico e também psicológico mais lhe agrada quando perspetiva a carreira de um jovem atleta?
Tem de ser competitivo, querer ganhar. O que distingue quem fica e quem vai e vem é o índice de competitividade. Os que são extremamente competitivos se calhar são difíceis de aturar e viram uma dor de cabeça para o treinador, mas ficam lá. Em termos futebolísticos, depende. É preciso qualidade técnica, que, para mim, significa colocar em prática todos os atributos possíveis num determinado contexto tático que permitem que a sua equipa retire vantagem deles. Portanto, qualidade técnica e competitividade, e isto tudo é independente do modelo de jogo. Quando conseguimos conciliar tudo temos um Ronaldo ou um Messi.
5. Muitas vezes se fala da pressão acrescida que os jovens trazem de casa, com muitos pais a colocarem um peso nos ombros deles. Em que medida isso pode afetar o crescimento e o rendimento do jovem atleta?
De muitas maneiras. Temos até exemplos fora do futebol, de desportos que exigem mais horas de treino para chegar à elite. A esses é exigido chegar à elite e eles chegam lá e cedo, mas depois desistem. E porquê? Porque se calhar nunca viveram o que os outros da idade dele viviam. No futebol isso não acontece tanto, logo a começar porque as horas de treino não são tantas como noutros desportos. Mas, muitas vezes, estamos à espera que, em nossa casa, nasça a pessoa que nós não fomos. Eu queria ser jogador de futebol, mas não consegui ser, então quero que o meu filho seja o melhor jogador do mundo e incuto aquilo no miúdo. Muitas vezes até chegam ao final do jogo e a primeira preocupação não é dar comida ao filho e saber se ele está bem, é fazer observações sobre o jogo que ele fez. O miúdo se calhar até já vinha pressionado pela presença dos pais nas bancadas, e isto acontece, como depois ainda tem de ouvir as observações dos pais. Ora, cabe a eles saber como são os filhos deles, saber se ele gosta ou não de falar do jogo no final ou se reage bem às observações ou não. Tem de se respeitar o jovem. E, muitas vezes, surge o abandono do futebol por culpa de dois agentes, pais e treinadores, porque, por vezes, estes últimos também têm culpa. Há muitos miúdos que deixam de treinar porque ficam fartos. Os pais têm de ser pais, não podem ser treinadores, porque isso vai estragar o miúdo ao colocar pressão desnecessária. O pai quer ser treinador, mas o treinador não quer ser pai do miúdo fora do campo, então tudo isto gera conflito na cabeça do miúdo, porque deixam de saber a quem dar ouvidos e para que lado seguir.
6. A aposta em jovens da formação que tem vindo a verificar-se na generalidade dos clubes portugueses, indica que o paradigma no futebol mudou em definitivo ou será algo passageiro que advém de uma fase financeiramente mais vulnerável?
Vivemos um pouco por ondas. Agora veio esta onda, como nos anos 80 e no início do milénio. Pelo meio tivemos os anos 90, com a chegada de muitos estrangeiros. Neste momento é o futebol de formação. A meu ver é por necessidade, porque até já tivemos outras gerações tão fortes como a atual. Existe qualidade sim, mas hoje o jogador estrangeiro também está mais caro, por exemplo. Financeiramente também não temos a mesma capacidade de resposta como tínhamos antes. Até porque, por exemplo, o Real Madrid de hoje arrisca mais e vai à origem, já não compra a clubes de menor dimensão, que eram entrepostos. Portanto, penso que é passageiro, infelizmente, porque temos qualidade para mais e melhor.
7. Atualmente, o talento jovem dos atletas portugueses está já no top-5 dos mais procurados, ou estará ainda a caminhar progressivamente para tal?
Existem pessoas que naturalmente têm mais jeito para uma determinada atividade do que outras. Não acredito que haja uma diferença percentual tão acentuada entre países, em matéria de talento. Aqui existe talento na formação, em atletas e treinadores, mas existe uma política incorreta na formação em Portugal. Em Inglaterra, de há uns anos para cá, apostou-se num determinado tipo de formação e hoje estão a colher frutos. E tudo porque diminuíram o número de clubes e aumentaram o número de academias. Quem é mesmo bom frequenta clubes, mas quem não é tão bom não fica esquecido, porque existem as academias. Mais cedo ou mais tarde, se eles forem bons, serão chamados também, mas já não têm pressão. Outra coisa, lá não há campeonatos para todos os escalões. Têm muitos torneios e querem ganhá-los, mas se não ganharem esse, ganham o próximo. Se existirem vários torneios, provavelmente jogarão mais jogos do que os nossos miúdos em sistema de campeonato e, esses, porventura, serão até mais competitivos do que os do nosso campeonato, em que temos um FC Porto a defrontar o Sra. Da Hora e a dar 25-0, suponhamos. Qual a evolução de um miúdo do Sra. Da Hora a defrontar o FC Porto? Nem conseguimos ver qual o nível dele lá, porque nem irá tocar na bola, e isso pode conduzir ao abandono. E isto acontece até aos sub-15 ou sub-16. Mesmo até nos campeonatos nacionais isto acontece, porque um FC Porto, na primeira fase, tem um ou dois adversários reais, o resto é quase um passeio. Ao passo que, em Inglaterra, nesses torneios, colocam miúdos nivelados a defrontar-se entre si. Temos muita qualidade, mas não concordo com a maneira como formamos. Tem de haver diminuição de clubes e aumento de academias, para incutir motivação e evitar o abandono. O modelo competitivo na formação está errado.
8. Começou na formação, mas soma já experiência numa equipa da Liga NOS, à época o Arouca, ainda que como adjunto. Como foi dar esse salto?
Em primeiro lugar a qualidade técnica. Não existe quem não saiba receber uma bola lá. Em segundo lugar a competitividade. Até no jogo da “pataleca” era competitivo. Mas com alguma componente de diversão, mediante a personalidade de alguns jogadores. Mas todos queriam ganhar. Se disser aos miúdos que na primeira divisão de juniores, metade dos jogadores não cabe na Divisão de Elite da AF Porto, as pessoas vão achar que estou a exagerar, mas é essa realidade. Em Portugal há qualidade individual e preocupação em formar. Depois, a competitividade, aliada à qualidade técnica, faz com que alguns cheguem ao topo e fiquem lá mais tempo do que outros. Na I Liga eu vi essa capacidade de realizar todos os exercícios que planeávamos, sempre de forma competitiva, com diversão e muita qualidade técnica. Aprendemos muito com os próprios jogadores. Acho que os nossos miúdos não têm noção da qualidade que é necessária para lá chegar.
9. No que diz respeito ao talento que se vem observando no segmento de jovens treinadores em Portugal, sente que ainda necessita de ser “marketizado” de forma a ser equiparado ao talento dos jovens atletas ou pensa que correm em paralelo aos olhos do público em geral?
Não acho que corram em paralelo e, honestamente, acho que nunca deverão correr. No dia em que quisermos dar mais importância ao treinador do que aquela que ele já tem, ainda teremos treinadores mais “resultadistas” na formação, a menos que essa avaliação não seja feita com base em números, volto a frisar. Quando “marketizarmos” o treinador de formação, nesse dia vamos matá-la de vez em Portugal. Nesse dia só o jovem atleta maturado chegará ao topo, do que depender do treinador, porque a ganância e a necessidade de crescer passará a ser demasiado grande. O treinador não deve ter mais importância do que aquela que já tem. De resto, é ir progredindo. Às vezes não nos sentimos valorizados, é verdade, mas temos de batalhar.
10. Quem é a sua inspiração como treinador?
Como para 99% dos portugueses que tiraram o curso de Educação Física e enveredaram pelo futebol naquela altura, há um culpado, José Mourinho. A partir daí, vou beber um pouco de todos. Vou ao treino do Leeds e penso nos pormenores do Bielsa que se revelam “pormaiores” em jogo. Vou às equipas do Guardiola e vejo que têm todas a mesma matriz de jogo, mas uma matriz tática totalmente diferente. Vou à paixão que o Klopp mete em tudo o que há no jogo. Vou ao Ancelotti para ver um homem que nunca perde a postura. Vou à criatividade do Sarri. Bebo de todos e penso que em determinada questão gostava de ser parecido com um ou com outro.
11. No panorama do futebol português, qual foi o jogador que mais o impressionou ver jogar e por que razão lhe deixou essa marca?
Deco: O jogo tem que ser visto como um todo em que se exponenciam, naturalmente, as partes. Nesse contexto penso que o jogador que mais me marcou foi o Deco. Provavelmente, não foi o melhor jogador que vi jogar, mas por tudo aquilo que significava no FC Porto de 2003 e 2004, a forma como jogava, como empurrava a equipa, a forma apaixonada como tratava a bola. Era um líder autêntico dentro de campo, porque era o expoente máximo de um todo muito forte. Tenho até um cão chamado Deco.
Ricardo Quaresma: Em termos de criatividade, foi o jogador que mais se recriou no campo em Portugal. Não me lembro de um jogador que fizesse tantas coisas diferentes em campo. Não é só fintar para a direita ou para a esquerda, é o fazer isso e meter uma trivela a seguir ou uma de letra, mas tudo com um intuito tático. Não é tecnicamente desenvolvido, todo ele é desenvolvido, por ele todo. A equipa tira sempre uma vantagem tática do comportamento dele em campo. Não há um momento em que não exista o retirar de uma vantagem tática por ele estar em campo. Até pode estar parado. A forma como ele se mexe ou dribla vai levar a isso. Não joga só bonito, é, efetivamente, competente e eficiente.