Agosto 2020 | Por: Tiago F. Silva
Falar de milhões no futebol tornou-se banal, ocupa capas de jornais, noticiários, programas sobre futebol. Pegou de estaca no léxico dos portugueses. O futebol moderno aportou para a sociedade esta ousadia de pensar além do que é tangível para o comum mortal.
Contudo, estes mesmos milhões parecem restritos sempre à mesma temática, a das contratações. Mas não é bem assim. Aliás, não são poucas as vezes em que um jogador chega a custo zero (ainda que dificilmente o seja) e depois acaba por auferir um salário, esse sim, de milhões. Mas o que fica na retina é o rótulo “custo zero”.
Engane-se quem acha que é apenas o dinheiro gasto em transferências que pesa nas finanças de um clube. Na verdade, segundo o Anuário do Futebol Profissional, produzido pela Ernst & Young, para a Liga Portugal, os clubes portugueses apresentaram montantes significativos no capítulo dos encargos com pessoal, isto é, atletas, treinadores e outros.
De acordo com o relatório da consultora, referente ao período 2018-19, a Liga Portugal e as Sociedades Desportivas sob a tutela desta, totalizaram gastos de 341 milhões de euros, um aumento de 16,8% relativamente ao período homólogo. “Os jogadores têm sido os principais responsáveis por esse aumento (…) O salário médio dos jogadores da Liga NOS aumentou cerca de 17 mil euros anuais nos últimos cinco anos”, pode ler-se numa das conclusões.
A juntar a isso, mais uma vez segundo a EY, as receitas totais da Liga NOS aumentaram cerca de 827 M€ (um aumento de 42,5% face à época transata). Deste montante, convém sublinhar que 36% é representativo da transação e cedência de atletas (294M€), 21% da venda dos direitos televisivos (172M€), 19% da participação em provas europeias (155M€) e, em último da lista, 9% relativo a patrocínios, publicidade e corporate (74M€).
Mais receitas, mais gastos, mas de forma macrocéfala, tal como se verifica a cada época que passa, o que deveria levar a uma reflexão, quanto mais não seja porque deixa adivinhar um problema difícil de resolver. Por um lado, há notícias que dão conta do incumprimento salarial de alguns clubes, do outro as que anunciam contratações milionárias, com salários elevados.
O anuário não discrimina as massas salarias de cada SAD, pelo que é impossível analisar à lupa, mas algo não bate certo neste capítulo, ao nível da principal competição. Verifica-se uma discrepância salarial, reflexo de um fosso económico que se acentua e que levará a uma perda de competitividade e, até, a uma certa atitude submissa de alguns clubes face a outros.
Perdendo essa “rodagem” interna, das duas uma: ou as equipas mais fortes sentirão dificuldades fora de portas, face à cadência competitiva, ou então assistir-se-á a um foco quase total nas competições internacionais, uma vez que a interna estará, à partida, controlada. Veja-se, a propósito disto, os exemplos de PSG ou Juventus, crónicos campeões das ligas internas e totalmente focados nas glórias internacionais.
O problema já existia antes da pandemia e subsiste após a mesma, embora possa ganhar outros contornos. Se é certo que todos perderam, não é menos verdade que alguns perderam francamente menos do que outros e, em teoria, é mais fácil gerir um clube poderoso com menos recursos, do que um clube que os perdeu quase na totalidade.
Para amenizar este fosso no futebol português, duas hipóteses poderiam ser equacionadas.
Redução do número de equipas em competição
Esta é uma possibilidade que tem vindo a ganhar força e foi inclusivamente mencionada, aquando da apresentação do anuário. Os especialistas alertam para a macrocefalia que se verifica no futebol português, reflexo de um fosso económico que se acentua e que levará à perda de competitividade. Nesse sentido, o partner da EY, Miguel Farinha, sugeriu inclusivamente que se repensasse os modelos competitivos do mesmo.
Cingindo-nos ao capítulo das remunerações, excluindo a questão do modelo de competições, uma redução do número de equipas nas ligas profissionais poderia ser capaz de homogeneizar o nível competitivo e evitar situações extremas, como as de carência económica e incumprimento salarial, que propiciam esse fosso e enfraquecem as provas.
Estipulação de tectos salariais
Uma solução possível talvez fosse a mesma adotada por MLS ou NBA, isto é, a imposição de limites ao tecto salarial. Para os que procuram resultados imediatos, não seria viável, mas a longo prazo fortaleceria a competição interna e essa maior valia do campeonato permitiria até colocar, de forma sólida, mais equipas nas competições internacionais.
Isso não só poderia trazer maior prestígio, como eventualmente maior capacidade de os clubes atraírem e fixarem mais jogadores com talento para os seus quadros. Por consequência, aumentaria a competitividade desse ou de outro clube e, no final, ganharia a competição.
Esta medida ajudaria a amenizar o fosso, certamente, ainda que continuem a existir equipas mais favoritas do que outras. Na NBA, por exemplo, sempre houve franchises mais fortes e dominadores do que outros, mas a limitação de tectos salariais possibilitou maior equilíbrio entre equipas e aportou um fator surpresa, que advém da maior competitividade da Liga.
São apenas duas reflexões que saem do anuário apresentado. Ainda que não possam ser vinculativas, naturalmente, mereciam destaque. É indesmentível a discrepância que se vai verificando entre as equipas mais poderosas (não apenas os ditos grandes) e as restantes, com os resultados apurados pela EY a sustentarem ainda mais essa realidade.
Até que ponto poderá ser possível esticar a corda entre os clubes mais e menos poderosos sem deixar um deserto competitivo entre eles? O tema merece discussão e talvez a solução seja o oásis que se procura, a bem de um futebol português mais forte.