Março 2021 | Por: Tiago F. Silva
Se, tal como nós, é um apaixonado por futebol, pare tudo o que está a fazer agora.
Embora custe dizê-lo, o futebol português tem problemas.
Quem os não tem, não é verdade?
Mas há um em concreto que tem gerado preocupação e discussão crescente.
O tempo de jogo útil.
Pois é. Se ao futebol português estão reservados uns quantos elogios, sobretudo relacionados com o talento aí produzido, há, contudo, uma realidade paralela que em nada o beneficia.
De resto, foi mesmo tema central do “webinar” Thinking Foootball Summit 2021, promovido pela Liga Portugal.
Tratando-se de uma iniciativa que visava pensar o futebol, por certo, ninguém ficou indiferente aos números apresentados.
Quando um mais um, nem sempre dá dois
Peguemos então no bloco de notas.
Na temporada de 2019/20, a liga portuguesa ficou atrás dos principais campeonatos da Europa, a nível de tempo útil de jogo, paragens de jogo, número de faltas e golos.
Foram estas as conclusões de um estudo da Liga Portugal, após análise estatística de 4 mil jogos das oito principais provas da Europa – campeonatos de Inglaterra, Itália, Alemanha, Espanha, França e Portugal, mais a Liga dos Campeões e a Liga Europa.
A média de tempo útil de jogo foi de 52%. Significa isto que o consumidor da liga portuguesa só usufruiu de meio jogo, em média.
A uma parte soma-se a outra e, no final, o total é…uma, praticamente.
Em termos comparativos, só os campeonatos de Grécia e República Checa registaram um tempo útil inferior, ao passo que a Bundesliga deteve o mais alto, com 57%.
Juntemos mais uns quantos indicadores.
Começando pelas faltas, porventura o mais surpreendente.
No último ano e meio, 67% dos jogos da I Liga teve mais de 30 faltas. Nenhuma outra competição teve sequer 40% de jogos com esse registo (Premier League registou 8%).
Seguem-se as paragens de jogo, onde o campeonato português também é líder.
Em média, um jogo da I Liga regista 110 paragens, sem contabilizar substituições e intervenções do VAR. A Liga dos Campeões, prova com menos, tem 91 por jogo.
Apesar dos números alarmantes, importa sublinhar que a Liga Portugal estima um aumento do tempo útil de jogo na época 2020/21, para os 55,1%.
E ainda bem que assim é, até porque está provado que o tempo útil de jogo tem impacto noutros indicadores, como o número de passes ou golos.
Ora, se o intuito é vender um produto de qualidade, dentro e fora de portas, há provas mais do que suficientes de que, a médio prazo, de nada adiantará embrulhar bem o pacote.
Tal como num presente, o mais importante está no interior. E esse, convém vir inteiro.
“Temos de mudar esta cultura”
A frase foi proferida por Tiago Madureira em pleno “webinar”, que contou também com outras personalidades conhecidas do futebol português.
O diretor executivo da Liga Portugal não escondeu a preocupação com esta temática, provando a sua importância para o negócio do futebol português.
“É impossível estarmos sempre a falar em internacionalização e depois, na televisão, vermos uma liga com uma média de 110 paragens por jogo. Temos de mudar esta cultura. Na Premier League, em Inglaterra, joga-se sempre com a mesma bola. Isto é demonstrativo da capacidade cultural que têm sobre este tema”, afirmou.
Por esta altura, pergunta-se então: o que nos conduziu a isto?
Não existe um motivo em concreto, mas sim uma conjugação de vários fatores. Também eles foram discutidos no já referido evento.
Marco Silva salientou um “problema cultural” na forma como se olha para o futebol e para o jogo em si, alertando para a necessidade de haver “respeito e coragem” de todos os intervenientes e promotores do jogo.
O treinador português recordou ainda as pesadas multas aplicadas no futebol inglês.
Daniel Podence, atualmente na Premier League, alinhou pelo mesmo discurso e teceu comparações entre a forma de competir de ambos os campeonatos, explicando que os jogadores são forçosamente obrigados a adaptar-se à envolvência do campeonato britânico, caso procurem evoluir.
Costinha apontou o dedo às condições que os treinadores têm para desempenhar o seu trabalho, visto que estas podem influenciar o tipo de jogo que se procura para as equipas.
“Muitas equipas são obrigadas a trabalhar para o ponto, porque, se calhar, na semana seguinte, o treinador já não está”, lembrou o treinador, frisando também a fraca qualidade de alguns relvados.
No capítulo da arbitragem, que tem sido determinante para os números apresentados, Duarte Gomes destacou a “arbitragem defensiva intramuros”, face ao “maior escrutínio” que existe.
Todas estas condicionantes têm vindo a prejudicar o produto português, pelo que não seria de estranhar a introdução de algumas medidas que ajudem a catapultar o talento existente dentro de portas.
Contar os minutos que faltam para um futebol melhor
De que forma pode haver então a melhoria no produto?
Eis que chegámos à altura das propostas.
E há várias, desde cronometragem, substituições volantes, assistência médica em pleno jogo, regulação do relvado e até lançamentos laterais com o pé.
Muitas destas propostas foram abordadas no “webinar”, porém, não foi a primeira vez que vieram à tona.
Comecemos por aquela cuja concretização estará próxima. A regulação dos relvados.
Um bom tapete é fundamental para um melhor espetáculo e, por cá, tem sido tema controverso nos últimos anos. Nesse sentido, Tiago Madureira garantiu estar a ser discutido em sede própria, pelo que se adivinham mudanças.
A cronometragem real do tempo perdido, à primeira vista, parece ser a que tem mais condições para ir avante.
O ato de parar o cronómetro aquando de uma real paragem no encontro tende a ser o que viola menos a essência do jogo. De resto, já acontece no futsal.
Do “irmão mais novo” do futebol, vem também a hipótese das substituições volantes, embora tivessem de ser limitadas em número, naturalmente.
Quanto à assistência médica com o jogo a decorrer, por ser um dos principais motivos das paragens de jogo em Portugal, talvez fosse interessante tentar, pelo menos, tendo por base o que já acontece no râguebi.
Já os lançamentos laterais com o pé ou a proibição de o guarda-redes agarrar a bola em qualquer atraso, ainda que discutíveis, talvez se avistem como soluções menos eficientes, uma vez que a implementação iria abalar de imediato os alicerces do jogo.
Terminamos com uma alusão à chamada “cultura desportiva”.
O assunto dava pano para mangas, mas cingindo-nos ao espetáculo em si, cabe aos responsáveis serem os primeiros a dar o exemplo e adotar comportamentos adequados.
Pese embora os muitos interesses que circundam a indústria, é importante não esquecer que só um produto bom pode ser vendido e apreciado, caso contrário, todos sairão prejudicados, de uma maneira ou de outra.
Já que se quer apostar na mudança, pois então que ela seja acolhida por todos, sem exceção.
Até porque, uma coisa é certa. Ninguém quer pagar a totalidade por metade de um produto. Nesse caos, o mais provável é não o pagarem de todo e optar por outro.
Numa altura em que a concorrência é grande e em torno do mesmo “target”, as gerações mais novas, urge mais do que nunca pensar no presente e futuro do futebol.
Pois então, com ou sem cronómetro, contemos os minutos que faltam para a mudança.